Ares e Atena



E nascidos do conflito primordial, continuamos a história, conforme nos foi legada: a história da guerra. Do sucesso de uns perante a derrota dos outros, de que não rezará a história.

Esquecemo-nos hoje com demasiada facilidade que somos feitos do precário equilíbrio entre a necessidade do outro e o perigo que o outro representa. Afinal, descendemos de grupos humanos onde a cooperação era um factor essencial - na caça, na luta, na fuga - mas onde a competição era igualmente aguda e permanente. Luta pela segurança, pela comida e pelo sexo. Pois... Como hoje.

E, de facto, somos os descendentes dos mais fortes e dos mais agressivos, dos que sobreviveram, dos que se reproduziram. E não creio que estejamos assim tão longe, afinal.

E fomos fazendo as nossas lutas. Mas tal como tememos o outro, também precisamos dele. Agudamente. E por isso, em todas as religiões, em todas as culturas existe essa intuição da irmandade universal (ou irmandade primordial) do género humano. Por isso, todas as guerras são, por definição, guerras fratricidas.

Os exemplos são mais que muitos e em todos os continentes. O que provavelmente nos é mais familiar, o de Caim e Abel, representa bem o conflito entre pastores nómadas e agricultores sedentários no Médio Oriente Antigo. É um conflito pelo uso da terra, pelos recursos minerais, pela água (e está bem viva, hoje, esta guerra da água!). É um conflito entre dois sistemas de vida e de produção completamente diferentes e, por conseguinte, um conflito entre duas ideologias antagónicas, incompatíveis.

Por um lado, o pastor nómada, tão bem representado pelos patriarcas bíblicos. Homens errantes, livres, seguidos apenas por um grupo familiar ou clã de dimensão mais ou menos reduzida. Sempre à procura das melhores pastagens para os seus rebanhos, desconhecem a noção de propriedade individual da terra. Estes grupos têm uma organização política muito simples, baseada na autoridade pessoal do chefe do clã, que é ao mesmo tempo rei, juiz e sacerdote. Pode haver contactos ou trocas entre as tribos e até alianças, mas nunca a aceitação duradoura de uma autoridade centralizada. Certos líderes carismáticos conseguem unir muitas tribos à sua volta para uma campanha contra outras tribos, por exemplo, mas ninguém se sente parte de um estado – noção que lhes é completamente alheia. Encontramos exemplos deste tipo de estrutura social desde os Hunos de Átila, aos Apaches americanos, aos Hebreus e até nas tribos beduínas que se uniram para combater o domínio turco no século XIX, na Arábia.

Levando uma vida frugal, numa organização social simples, o nómada adora um número mais reduzido de deuses, até porque a sociedade dos deuses é sempre o espelho sublimado da sociedade dos homens. A viagem, o permanente contacto com a natureza, a auto-suficiência da tribo hão de conduzi-lo à intuição monoteísta, ao que parece em datas bastante recuadas. Da mesma forma que não precisa de muitas coisas, o nómada não precisa de muitos deuses.

Por outro lado, o agricultor sedentário, agarrado à terra, à sua terra - que defenderá ferozmente, imerso no barro fértil do delta dos grandes rios. Construtor de celeiros, moinhos, cidades. Criador de grandes trabalhos de irrigação que exigem a cooperação de muitos homens, de países inteiros. Precisa, por isso, de reis, de estados. Precisa de leis, precisa de leis de escritas. Precisa da escrita (uma invenção que só tardiamente os povos nómadas adoptaram). A sofisticação do processo produtivo conduz à emergência de uma sociedade complexa e estratificada.

Por precisar de tantas coisas, o sedentário não tem a bela auto-confiança e auto-suficiência do nómada que depende essencialmente de si próprio. Os povos sedentários tinham (como nós) uma noção muito clara da fragilidade da sua existência. Sabiam que a sua jovem agricultura, a sua frágil estrutura social dependiam de múltiplos factores: da terra - em primeiro lugar, da cheia – em tempo e na medida certa, do sol, da chuva, da ausência de doenças e do peso relativo dos impostos, da benevolência do rei e da sua capacidade de afugentar os inimigos que os cercam, ávidos dos imensos excedentes alimentares que produzem. Por isso o sedentário precisa de múltiplos deuses. Para cada problema inventa um novo deus. Desde as Grandes Mães da fertilidade, de Çatal Höyük, na Anatólia, aos deuses da técnica e do engenho como o Ptah de Menphis, a esses deuses "ideológicos", subtis, que representam a própria ordem estabelecida, a própria organização do cosmos - essencial para o sedentário - como a Deusa Maat egípcia e, claro, deuses da guerra.

A guerra é um facto inevitável entre dois sistemas tão diversos, em competição pelos mesmos recursos. Os hebreus, nómadas que eram, tomaram partido por Abel (o pastor), condenado o agricultor Caim. A vida destes dois tipos de comunidades é marcado por fricções constantes, incursões, razias, guerras por território.

O Islão foi, mais tarde, ainda um produto deste choque. Muhammad escreve a sua visão, numa altura em que a sociedade árabe é dilacerada pelas "vendettas" tribais e pela insubmissão dos vários clãs a qualquer autoridade política ou social. Aliás, o próprio Profeta foi vítima destes conflitos. A ética subtil que desenvolve no Corão consegue manter importantes aspectos da rude independência e apego à liberdade da tradição nómada, valorizando ao mesmo tempo o relacionamento social, o papel do homem da cidade (e a cidade - para onde convergem as caravanas, os homens, as preces - é sempre o ponto central da civilização muçulmana), do comércio, dos ófícios, em diálogo tolerante e pacífico com o outro. Por um lado civilizando o nómada, por outro libertando o sedentário, e preparando a civilização árabe para o papel de primeiro plano que viria a desempenhar na cena mundial.

Mas este conflito continuou e continua, sob muitas formas. Assistimos há poucos anos ao violentíssimo choque entre uma cultura de agricultores (os Hutu) e pastores (os Tutsi) no Ruanda.

E sobre o sangue do irmão, sobre a conquista do outro, foram erguidos os impérios, no esforço de resolver o conflito: civilizar a violência, justificar e dar um sentido ao lado sanguinário da nossa natureza. Organizando o instinto: tentando substituir a guerra selvagem pela guerra justa. Ares (um deus selvagem, insubmisso, bárbaro nos vários sentidos do termo, que traz consigo o medo e o prazer da matança) por Atena (a deusa da guerra, mas também da justiça). Dois irmãos desavindos. Como em todas as guerras. Como hoje.

A propósito:
- A Ilíada, Homero
- Introdução às Primeiras Religiões, Pierre Lévêque
- Bíblia Sagrada

- O Corão

e Encyclopedia Mythica

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