Vicente e Prometeu

A nossa natureza impermanente, imperfeita, contingente, é uma afronta à perfeita simetria do universo.
A nossa inquietação e desasossego perturbam a solene sinfonía das esferas celestiais.
Não cumprimos, obedientes e temerosos, o nosso papel no cosmos, seja ele qual for.
A nossa auto-consciência conduz-nos a questionar o lugar que nos foi destinado e a transformá-lo.
E é isso que fazemos, e é isso que nos define: nós transformamos. Alteramos, inovamos, desarrumamos, destruímos, sim, mas também criamos "o que antes não existia" e tornamo-nos semelhantes a deus: o grande antagonista.
Lutamos permanentemente contra a ordem criada. De certa maneira, o homem é criatura mais paradoxal da criação. O erro de Deus?
Temos múltiplos exemplos de deuses que se arrependem de ter criado os homens e ponderam exterminá-los. O mais conhecido é o dilúvio bíblico, que, aliás, vem no seguimento de uma antiga série de relatos de dilúvios presentes na Suméria, no Egipto, na Índia, na América do Norte e em muitas outras culturas. Algo terá ficado na recordação dos homens do degelo e subida do nível das águas do mar da última era glaciar, há 18.000 anos atrás. Histórias velhas...

Estes dilúvios vêm inaugurar uma nova era, deixando para trás um passado primitivo e selvagem. São como um recomeço da criação.
À fúria divina sobrevive sempre um personagem de características excepcionais. Ou é um herói, no sentido clássico da palavra, ou o mais puro, ou o mais santo. Em todo o caso, sempre um escolhido, que representa o que de melhor existe na espécie humana.
Como Vicente, o rebelde corvo de Torga, que recusa a indignidade da vida na arca de Noé:

"Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu."


Foi, então, preciso arrancar dos deuses a sobrevivência o direito a existir. Existirmos é um gesto de rebeldia, contra a arrogância dos deuses que nos criaram e que nos podem destruir por capricho.

Também antigos mitos nos contam como à força e à violência divinas se opôs a dignidade humana.

Entre eles, a história de Prometeu que, comovido pelos sofrimentos dos homens, lhes trouxe o domínio do fogo, fonte de todo o progresso humano e símbolo universal da razão. O fogo, charneira entre a selvajaria e a civilização. O fogo, que permitiu a olhos humanos penetrarem pela vez primeira na escuridão e no desconhecido. O fogo, que nos fez maiores do que éramos.
Por esta oferta, que baralhou os dados originais da criação, ao tornar os homens semelhantes aos deuses, Prometeu foi punido por Zeus. Foi acorrentado às montanhas do Caucaso, onde uma águia (o pássaro que é identificado com o próprio Zeus) lhe devora, todos os dias o fígado. Surge muito claramente, nas várias fontes (Ovídio, Ésquilo, Hesíodo, Byron) que mencionam este mito, a revolta pela crueldade e injustiça desta punição. O mitógrafo clama contra a "Hubris" divina. À força e à violência que o prendem ao rochedo do suplício, Prometeu opõe a razão e a determinação. A dignidade. A única arma.


A propósito:

- Os Bichos; TORGA, Miguel (disponível aqui)
- Prometeu Agrilhoado; ÉSQUILO (no Projecto Gutenberg)
- Prometheus; BYRON, Sir George Gordon (poema de 1816 aqui)

e como é que se pode passar sem a Wikipedia?

Escultura de Scott Eaton
Quadro de Paula Rêgo

Francisco - o apaixonado de deus

Il Cantico del Sole (Cantico della Creature)
di Francesco di Assisi
Assisi Codex

Altissimu onnipotente bon signore. tue so le laude la gloria e l onore et onne benedictione. Ad te solo altissimo se konfano. et nullu homo ene dignu te mentouare.
Laudato sie mi signore cum tucte le tue creature spetialmente messor lo frate sole. lo quale iorno et allumini per loi. Et ellu e bellu e radiante cum grande splendore. de te altissimo porta significatione.
Laudato si mi signore per sora luna e le stelle. in celu l ai formate et pretiose et belle.
Laudato si mi signore per frate uento et per aere et nubilo et sereno et onne tempo. per lo quale a le tue creature dai sustentamento.
Laudato si mi signore per sor acqua. la quale e multo utile et humile et pretiosa. et casta.
Laudato si mi signore per per frate focu. per lo quale ennallumini la nocte. ed ello e bello et iucundo et robusto et forte.
Laudato si mi signore per sora nostra matre terra. la quale ne sustenta et gouerna. et produce diuersi fructi con coloriti fiore et herba.
Laudato si mi signore per quelli ke perdonano per lo tue amore. et sostengo infirmitate et tribulatione. beati quelli ke l sosterranno in pace. ka da te altissimo sirano incoronati.
Laudato si mi signore per sora nostra morte corporale. da la quale nulla homo uiuente po skappare. guai a cquelli ke morrano ne le peccata mortali. beati quelli ke trouara ne le tue sanctissime uoluntati ka la morte secunda nol farra male.
Laudate et benedicete mi signore et rengratiate et seruiteli cum grande humilitate.


Michele Faloci Pulignani (ed.). Il Cantico del Sole di San Francesco di Assisi. Foligno: Tipografia di Pieter Sgariglia, 1888, pp. 10-11.disponibilizado por Webster University - http://www.webster.edu/~barrettb/cantico.htm


No final do século XII, a Europa vive tempos conturbados. É o tempo das cruzadas, das guerras de religião, conquista e reconquista, que hão de levar à emergência de conjuntos territoriais mais estáveis, que serão a base das modernas nações europeias.
Perante as incertezas da época, os espíritos agitam-se, angustiam-se e entregam-se à superstição. Surgem visionários, eremitas e pregadores que agitam a ameaça da vingança do deus castigador sobre a cabeça da humanidade entregue ao pecado. É também o tempo das heresias: cátaros, valdesianos e outros, sobre os quais cairá pesada a mão temporal do papa.
Perante a precariedade da vida, breve, sofredora, violenta, aposta-se mais na salvação da alma. Procura-se o refúgio nos claustros dos mosteiros, onde também por esta época começam a nascer as primeiras universidades.
Em 1181 nasce na cidade de Assis o jovem Francesco di Bernardonne, filho do próspero comerciante Pietro di Bernardone. Francisco tem acesso a uma educação cuidada e aprende diversas línguas. Leva a vida de um normal jovem de boas famílias, entre os estudos e o convívio com os amigos. Sonha, tal como eles, com a glória das armas e envolve-se na defesa da sua comuna contra a rival Perugia, o que o há-de levar a ser feito prisioneiro na batalha da Ponte San Giovanni. Regressado a Assis cerca de dois anos depois Francisco vê-se mergulhado numa profunda crise espiritual. Das suas deambulações angustiadas pelos arrebaldes da cidade virá a nascer um dos mais brilhantes movimentos de renovação do cristianismo.
Francisco dá uma nova forma à vivência da fé cristã pela valorização do sentimento. Para Francisco, a experiência de deus é uma paixão arrebatadora, que nos preenche, eleva e ilumina. As portas da comunhão com o divino estão abertas a todos os homens que decidam entregar-se à doçura de um sentimento profundo de harmonia, de felicidade, de amor. Trata-se não tanto um deus entendido, mas um deus sentido.
Toda a criação partilha deste sentimento porque tem a mesma origem e a mesma condição contingente. O divino impregna tudo. Do alto ao baixo, do norte ao sul. Assim, Francisco prega aos homens, como às plantas e aos animais. Até ao “irmão sol” e à “irmã lua” (v. supra Il Cântico del Sole). Há uma noção de irmandade entre todos os seres vivos. Francisco introduz a noção de uma ecologia metafísica em que o homem é apenas outra parte do mesmo cosmos.
Os bens materiais afastam-nos do nosso semelhante e da contemplação da beleza da criação. Francisco prega apaixonadamente a pobreza, no arrebatamento da palavra de Cristo: “larga tudo e segue-me!”. Também nisto Francisco é um homem do seu tempo em que se questiona a riqueza do clero e a apetência da igreja pelas riquezas e poder temporal. Esta questão está especialmente viva na Itália do século XII em que os Estados Pontifícios lutam para afirmar o poder temporal do papa.
Perante este problema Francisco afirma a opção preferencial pelos pobres, inaugurando uma questão que há de acender vivos debates no seio da igreja católica e que está ainda hoje muito longe de estar resolvida.
A pobreza franciscana não deve ser entendida como um ascetismo mortificante, mas mais com a busca de uma vivência “natural”. Da mesma forma que plantas e animais nada possuem – e como tal nada os afasta da contemplação e alegria de viver – o homem que renuncia aos bens do mundo entra num estado de despreocupação. Sabendo-se nas mãos de deus, o homem está mais perto da verdade.
Francisco propõe-nos como modelo de vida a imitação de Cristo. O seu empenhamento nesta via é simbolicamente confirmado pelos estigmas – imagem da terna e profunda oferta / sacríficio do Cristo – que é o primeiro cristão a receber e que serão, daqui em diante, um dos mais poderosos símbolos de santidade.
Reencontramos nos ensinamentos de Francisco uma visão da condição humana, reconduzida ao seu estado natural, na sua íntima e emocional ligação ao divino. O homem é uma pequena parte de uma ideia perfeita.


A propósito:

Sabatier, Paul – Life of Saint Francis of Assisi – disponibilizado pelo Projecto Gutenberg
e a imprescindível Wikipedia
Quadro de Giovanni Bellini - St Francis in Ecstasy (1480-85) disponibilizada por Web Gallery of Art

Shinto - conviver com os deuses

A antiga religião popular japonesa foi, como em tantos outros sítios, animista. Os homens começaram a adorar, a atribuir virtudes e poderes a pedras, rios, animais ou montanhas. Tudo o que parecesse ser excepcional, singular partilhava dos poderes originários dos criadores do mundo – os já aqui mencionados Izanagi e Izanami – todos eram kami, espíritos ou deuses.

Assim, também todos os homens, após a morte se tornam num kami, independentemente dos seus méritos e trabalhos. Os kami, colectivamente chamados Yaoyorozu no Kami (qualquer coisa como os “oito milhões de kami”), não têm uma virtude específica, ou uma qualidade moral divina. São falíveis, erram, podem ser benévolos ou nocivos, podem exercer vinganças por ofensa recebidas em vida, ou trazer boa fortuna.

Então, mais do fixar cânones e dogmas, o Shinto nasceu de uma colecção de rituais destinados a propiciar estes voláteis espíritos - que habitam o mesmo mundo que nós e que estão em toda a parte. A “adesão” ao Shinto nem sequer depende, aliás, de qualquer crença particular, nem isso tem qualquer importância. O que é relevante, o que é substancial, o que contribui para manter o equilíbrio e a harmonia cósmica é o próprio ritual. Assim, mais do que uma religião, no sentido tradicional da palavra, o Shinto é um conjunto de práticas e de tradições vividas essencialmente em família, no pequeno altar doméstico destinado aos antepassados, ou nas dezenas de grandes festivais colectivos que prestam culto aos grandes kami. Relativamente pouca gente se diz “shintoísta”, mas muita muita gente pratica, pacificamente, rituais. Mais do que a realização de uma "vontade dos deuses", do que se trata aqui, verdadeiramente, é mais de uma etiqueta cósmica, de actos de cortesia para com os kami, em que a observação dos rituais garante a harmonia e as boas relações entre mundos paralelos.

Em determinada fase da história, o Shinto foi transformado em ideologia unificadora do Japão, até por ser naturalmente partilhado por todo o seu povo e, mesmo, em religião de estado, tendo sido feitas codificações de mitos e rituais, quer para firmar uma genealogia divina para a Família Imperial, quer para afirmar um conjunto de ideias “nacionais” japonesas perante as influências estrangeiras, ocidentais e chinesas. Modernamente, o Shinto foi mesmo usado como símbolo das aspirações imperialistas japonesas e arma política da direita tradicionalista. Nesta, como em tantas outras religiões, aquilo de que os deuses gostam mesmo é de política...

Há uma intuição que se desenvolveu em muitíssimos sítios e épocas da proximidade natural entre este mundo e o outro, entre o natural e o fantástico, entre o palpável e o numinoso. Os kami estão em todo a parte: nos objectos do dia-a-dia, mas também na fertilidade dos campos e dos animais, no monte Fuji, e no espírito dos nossos antepassados. Homens e deuses convivem lado a lado, numa harmonia que o ritual garante. E a fronteira entre os dois mundos é tão real e tão ilusória quanto a espessura de um Torii (o portão ritual, presente nos grandes templos Shinto), que representa, tão ao gosto japonês – apontando directamente – a proximidade absoluta entre os dois mundos.


A propósito:

- Internet Sacred Texts Archive
-
Encyclopedia of Shinto
e como sempre
- wikipedia

Deus à la carte

Nada mais estranho neste tempo planetário do que aquilo que se designa como “regresso do sagrado”: sucesso das sabedorias e religiões orientais (zen, taoísmo, budismo), dos esoterismos e tradições europeias (cabala, pitagorismo, teosofia, alquimia), estudo intensivo do Talmude e da Torah nos Yéchivot, multiplicação das seitas; incontestavelmente, trata-se de um fenómeno muito pós-moderno em ruptura declarada com as Luzes, com o culto da razão e do progresso. Crise do modernismo tomado de dúvidas sobre si próprio, incapaz de resolver os problemas fundamentais da existência, incapaz de respeitar a diversidade das culturas e de trazer a todos a paz e o bem-estar? Ressurreição do recalcado ocidental no momento em que este já não tem qualquer sentido a oferecer-nos? Resistência dos indivíduos e grupos à uniformização planetária? Alternativa ao terror da mobilidade, revalorizando as crenças do passado? (...) Convém, em primeiro lugar, repor no seu justo lugar a atracção de que actualmente gozam as múltiplas formas de sacralidade. O processo de personalização tem por efeito uma deserção sem precedentes da esfera sagrada, o individualismo contemporâneo não pára de minar os fundamentos do divino (...) Mais ainda, a própria religião é arrastada pelo processo de personalização: é-se crente mas à lista, conserva-se este dogma e elimina-se aquele, misturam-se os Evangelhos com o Corão, o zen ou o budismo, a espiritualidade entrou na época caleidoscópica do super-mercado e do self-service. O turn over, a desestabilização investiu o sagrado ao mesmo título que o trabalho ou a moda: durante algum tempo cristão, alguns meses budista, alguns anos discípulo de Krishna ou de Maharaj Ji. A renovação espiritual não resulta de uma ausência trágica de sentido, não é uma resistência à dominação tecnocrática, mas, causada pelo individualismo pós-moderno, reproduz a sua lógica flutuante. A atracção do religioso é inseparável da dessubstancialização narcísica, do indivíduo flexível em busca de si próprio, sem referenciais nem certezas – nem sequer a do poder da ciência – não é de ordem diferente da atracção efémera, mas intensa, por esta ou aquela técnica relacional, dietética ou desportiva. Necessidade de o individuo se redescobrir a si próprio ou de se aniquilar enquanto sujeito, exaltação das relações interpessoais ou da meditação pessoal, extrema tolerância e fragilidade podendo consentir nos imperativos mais drásticos, o neo-misticismo participa da gadgetização personalizada do sentido e da verdade, do narcisismo psi, seja qual for a referência ao Absoluto que lhe subjaz. Longe de ser antinómica em relação à lógica maior do nosso tempo, o ressurgimento das espiritualidades e esoterismos de toda a espécie não fez mais do que cumpri-la, aumentando o leque de escolhas e possibilidades da vida privada, permitindo um cocktail individualista do sentido de acordo com o processo de personalização.

Gilles Lipovetsky - A Era do Vazio - Ensaios sobre o individualismo contemporâneo
trad. Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria
Relógio d'Água Editores, 1989

Jacob - lutar com deus

No sentido mais profundo, toda a crença é uma luta. A fé num deus (ou em deuses) é o ainda mais agudamente. Acreditar é já escolher um caminho e rejeitar outro. É abordar toda a angústia da condição humana.

Mas a fé, no que tem de mais íntimo, é a maior das lutas interiores. Ficamos divididos entre o visível e o invisível, entre o palpável e o que nos escapa por entre os dedos.

Na nossa perplexidade perante o conflito imanente a toda a existência, justamente onde julgávamos ir encontrar a paz, tropeçamos num novo problema. A própria crença é vivida problematicamente e é feita de angústias, de escolhas de rejeições, de luta permanente na nossa identidade múltipla.

É preciso lutar com o anjo. É preciso derrotá-lo. É preciso ver a face de deus e sobreviver, como aconteceu a Jacob (Gn 32, 23) para aceder ao seu nome verdadeiro, Israel. “Ver a face de deus” significa, de facto, ser capaz de abordar, dentro de si mesmo, o metafísico, o numinoso, o absolutamente outro, o transcendente, mas entendido de uma maneira muito mais radicalmente violenta e estranha. O outro sem nome: deus.

E trata-se em boa parte de uma luta do entendimento contra o entendimento. Como conciliar a necessidade de deus com a sua absoluta improbabilidade? Do ponto de vista lógico, deus pode ser necessário mas é absolutamente improvável, e a sua existência causa-nos muitos mais problemas do que aqueles que procurávamos resolver de início. Aliás, como a história prova, sobejamente.

É Cristo que diz (em Mt 10, 34) “Não pensem que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz, mas a guerra.” Esta dolorosa luta dentro nós, esta escolha permanente e desumana: entre o impulso inato para o infinito e a necessidade causada pela nossa contingência, entre a nossa necessidade de vida e os nossos olhos que elevam para a meta-vida, imaginada, sentida, acreditada.


A propósito:
UNAMUNO, Miguel
– La Agonía del Cristianismo (absolutamente indispensável!)

Quadro de Rembrandt Harmenszoon van Rijn

Ahura Mazda e Angra Mainyu: o conflito cósmico


O florescimento do budismo foi favorecido pelos longos períodos de paz e estabilidade política nos grandes impérios do oriente. É mais fácil conviver com a ideia da imanência de uma ordem transversal a todo o universo quando a própria sociedade permanece, mantém-se, continua, aparentemente inalterada pelo escorrer dos séculos. Não foi assim em toda a parte.

A Pérsia clássica foi sempre uma zona de passagem, de comércio, contacto e conflito (claro!) entre oriente e ocidente. No rasto das caravanas da rota da seda, vieram homens, deuses, ideias, línguas e, obviamente, conquistadores. Aí, a criação de uma grande unidade política estável, assente numa autoridade centralizada, foi um processo muito mais complexo e de menor continuidade.

A própria paisagem iraniana é feita dos contraste entre as grandes cadeias montanhosas e os vales fertéis e os vastos desertos. As guerras são frequentes e prolongadas. Os homens, as línguas e os deuses são múltiplos e díspares.

Há assim uma clara intuição de que a natureza do mundo é problemática. A existência é problemática. O conflito é.

Aqui não falamos de complementariedades nem de atracção dos opostos. Perante esta realidade os antigos iranianos não concebiam nenhuma reconciliação suave da multiplicidade do mundo.

Na profecia trazida por Zoroastro (também conhecido por Zaratrustra) dois princípios irredutivelmente antagónicos regem o mundo: Ahura Mazda e Angra Mainyu.

Ahura Mazda é o supremo criador do universo, da ordem do universo, representa o bem, a verdade, a luz, a fertilidade, a vida.

Do outro lado, Angra Mainyu (ou Ahriman), o nosso familiar demónio, representando o mal, a mentira, a escuridão, a morte.

Perante este antagonismo, o homem é confrontado com a escolha: ou se torna um soldado de Ahura Mazda, e contribui, por boas acções, boas palavras e bons pensamentos, para a realização da asha (a ordem universal), ou segue Ahriman, e opta pelo mal, pela desordem, pela mentira, pela morte.

Não há fugas nem subterfúgios neste combate. A nada, nem a ninguém é permitida a neutralidade na batalha entre o bem e o mal.

O conflito é assumido, integrado na ordem natural das coisas. A existência é aceite na sua integralidade, nas suas diversas vertentes. Ao escolhermos o lado da vida, aceitamos toda a vida. E por isso os seguidores Ahura Mazda recusam o ascetismo, abjuram o celibato, valorizam a alegria e os prazeres terrenos como parte integrante da asha. Amar e fazer o bem, defender a ordem contra o caos, passa também por gostar de viver, pelo prazer de se ter um sentido, um dever a cumprir.

O homem torna-se um elemento activo, torna-se parte do grande combate cósmico. Pelo uso da sua liberdade, toma uma opção escatológica no conflito.

O zoroastrismo nega ao homem a paz de espírito budista da calma integração nos fluxos cósmicos, mas dá-lhe, em troca, uma escatologia. Um caminho, um dever, um sentido.

E, mais do que isso, dá-lhe a liberdade de escolher.

Esta é a grande inovação, que mais tarde será assumida pelas três grandes religiões do Livro: o livre arbítrio. O homem pode escolher. Este é o fundo do drama humano: entre a liberdade de traçar o próprio destino e a angústia insolúvel da escolha, da rejeição de um caminho à aceitação de outro.

O homem é um ser criado, por isso contingente, mas possui a complexidade suficiente para poder optar e não ser predeterminado. Com a liberdade, advém também, claro, a responsabilidade das consequências da escolhas que faz. Mas vemos, pela primeira vez, o homem a assumir um papel importante nos grandes duelos cósmicos. Estamos perante uma espécie de maioridade metafísica da espécie humana perante o criador, que de pai se transforma em companheiro de armas.

Num cosmos problemático, dual, a escolha do homem torna-se central nos destinos do universo. Mais do que o sucesso imediato (histórico) dos esforços humanos, joga-se, dentro de cada um de nós, o conflito primordial e contínuo dos princípios opostos e o destino final do universo: a vitória do bem e a derrota do mal.


A propósito:

- Encyclopaedia Irânica;


- e os amigos habituais.


Buda - a unidade perdida de todas as coisas

Havia qualquer coisa de indeterminado
antes do nascimento do universo.
Esta qualquer coisa é silenciosa e vazia.
É independente e inalterável.
Circula por toda a parte sem nunca se fatigar.
Deve ser a mãe do universo.
Tao-te-king (XXV) - Lao-tze


Porque o ser e o nada engendram-se
o fácil e o difícil completam-se
o longo e o curto formam-se um pelo outro

o alto e o baixo tocam-se
a música e o ruído harmonizam-se
o antes e o depois sucedem-se.
Tao-te-king (II) - Lao-tze


No princípio, tudo era uma coisa só e a diversidade do mundo e do homem ainda não existia. O caos primordial, potencialidade absoluta, é também unidade absoluta. E a criação foi a mutilação desta unidade. A diversidade, fonte do conflito, da perplexidade, da solidão, inaugurou a história das coisas.

O homem percebeu que a ordem cósmica é constituída por estes ciclos de conflito / aproximação, pelo qual a vida e o mundo se renovam, que é por esta dialéctica dos contrários que a realidade muda e permanece. É neste jogo de oposições e complementaridades que está a essência de tudo o que existe.

Todos estes elementos complementares e contraditórios participam num sistema maior, do sistema original do próprio universo. Deste ponto de vista, toda a diversidade se torna apenas aparência, porque todas as coisas partilham da mesma natureza e é a sua unidade, não a sua diversidade, a verdade substancial.

Assim, todas as culturas exploram, sob várias formas, a intuição da unidade fundamental de todas as coisas. Seja através do weltgeist de Hegel, do Logos de Heráclito, do άπειρον (o indeterminado, o ilimitado de Anaximandro), da natureza de Buda, ou do Tao.

Por muitos caminhos temos procurado a saída para esta angústia permanente, de sermos limitados e sós, de estarmos em confronto e dependência do outro. Lutando contra o outro (negando-o), amando-o (fundindo-nos com o outro), ou procurando apagar o eu, como forma de resolver a contradição com o outro.

Este foi o caminho trilhado, desde cedo, pelo budismo mayana, mas que atingiu uma subtileza de outro nível, quando entrou em contacto (em diálogo e em conflito) com o pensamento taoista, nos obscuros séculos V e VI da nossa era. Deste contacto de ideias - o mais profundo do inconsciente de um continente inteiro! - há de nascer a intuição universal (e universalista) do budismo zen.

Conta-nos o mito que Gautama Sâkyamuni, príncipe herdeiro de um pequeno reino do sopé dos Himalaias (que terá vivido cerca de 560 a 480 a.c.), atingiu a iluminação (despertar – Bodhi, donde budismo) aos trinta e cinco anos, após ter abandonado uma vida de luxo e prazeres, para se dedicar exclusivamente à meditação. Nesta sua súbita e espontânea intuição, Gautama conclui que a tudo é maya (ilusão), que a aparente diversidade e conflito do mundo que nos rodeia é ilusória, porque é impermanente, mutável, caótica, mesmo.

Assim, o homem está fechado no ciclo da acção (karma) e reacção, sob o véu de maya, desejando, agindo, sofrendo, morrendo e renascendo (o ciclo do samsara), afastado da contemplação da verdade. Vivemos, num estado de desejo e insatisfação perpétua.

De facto, nunca estamos satisfeitos, pois quando obtemos algo que desejávamos, logo novo desejo nasce dentro de nós. Perante a aparente mudança e conflito contínuos (à nossa volta, entre nós e connosco próprios), temos noção da nossa fragilidade, da nossa finitude, limitação e contingência. Assim, criamos necessidades para nos proteger e alhear da impermanência das coisas. Este estado de tensão permanente (dukha), torna-nos escravos dos nossos desejos, incapazes de ver a verdade, incapazes de ser felizes.

E a maior ilusão, a mais difícil de vencer (e especialmente para nós, ocidentais) é a ilusão do eu. Se, em essência, todas as coisas são uma e toda a diversidade, toda a separação é ilusória, também o nosso ser (atman) individual é ilusório. A personalidade individual é a grande fonte de dukha.

Assim, só pelo abandono de todos os desejos e, em última instância, pela negação da nossa própria individualidade conseguiremos contemplar a verdade, e abandonar o ciclo de nascimento-renascimento.

É preciso compreender que não se trata aqui de uma negação do eu no sentido negativo. Uma morte da personalidade. Não. O que se pretende atingir, nomeadamente através da meditação, é uma tranquila neutralidade, uma aceitação pacífica da existência, em última instância, um silenciar da confusão de pensamentos, angústias e preocupações que escondem de nós o absoluto.

E a verdade que se busca compreender é que partilhamos da natureza universal de todas as coisas. Todos somos – mesmo que o não vejamos – Buda.

A dificuldade em conseguirmos atingir esta verdade vem de ela ser demasiado simples e estar demasiado perto de nós (somos nós). A nossa perspectiva analítica do conhecimento, que passa sempre pela distância entre o observador e o observado, não nos permite derrubar esta barreira.

Estes termos não se aplicam de maneira nenhuma, pois, afinal, aqui estamos a falar da absoluta identificação entre sujeito e objecto de conhecimento. Logo, todo o discurso sobre o zen é inútil e inadequado, como diz o antigo provérbio: "Aqueles que sabem, não falam. Aqueles que falam, não sabem."

Assim, todos os termos explicativos que possamos empregar para descrever o despertar (em japonês satori) serão sempre impróprios. O budismo zen, na tradição taoísta procura antes um “apontar directamente”. Como cita Watts: “Fora do ensinamento; à parte da tradição. Não fundamentado em palavras e letras. Directamente apontando para a mente do homem. Aprofundando a natureza própria e alcançando o estado de Buda.”

Assim, no budismo zen, o despertar não se atinge através de nenhum longo caminho de exercícios penosos, esforços ou sacrifícios. Pretende-se extinguir o desejo e não apenas encaminhá-lo noutra direcção. Como escreve Seng-ts'an (o terceiro patriarca do budismo zen, morto em 606): “Segue a tua natureza e harmoniza-te com o Tao; / Avança calmamente e abandona as inquietações. / Se os teus pensamentos estão amarrados estragas o que é genuíno... / Não sejas antagónico ao mundo dos sentidos, / pois quando lhe não és antagónico / verificas ser ele o mesmo que o completo Acordar. / A pessoa sábia não se esforça / o homem ignorante ata-se a si próprio... / Se trabalhas a tua mente com a tua mente / como podes evitar uma imensa confusão?”

Assim, o despertar é, tal como na natureza, um processo que se realiza espontâneamente. Pelo não agir, pelo não pensar. “Sentando-se tranquilamente, nada fazendo.” (o za-zen) O satori é algo que surge subitamente, inesperadamente, como um relâmpago de iluminação. E os relatos falam-nos de mestres que atingiram o despertar nas circunstâncias mais prosaicas, trabalhando, comendo, passeando. Enfim, fazendo tudo o que nos é natural.

Esta ideia da iluminação súbita e inesperada, repete-se por muitas religiões. No cristianismo, Paulo de Tarso (São Paulo) é fulminado subitamente pela epifania na estrada de Damasco, Santo Agostinho passeia no seu jardim quando lhe surge surge um livro e a voz de deus que lhe diz: “Tolle. Lege”, (Toma. Lê.).

Da mesma forma, em todos os continentes, o transe místico dos xamãs, que lhes permite contactar com o mundo dos espíritos, é conseguido pela alienação do estado normal do homem. Pela dança obsessiva, pela ingestão de drogas, pela música (a mais poderosa das drogas!), mas sempre por uma transfiguração / anulação do individuo.

Os momentos de visão religiosa ou de iluminação são sempre súbitos e inesperados. São os momentos em que nos abandonamos e permitimos à nossa auto-consciência baixar a guarda. São sempre o passo que se dá de olhos fechados. Quando abandonamos o limites estreitos do eu para reencontrarmos a substancia universal das coisas. Quando resolvemos o conflito pelo abandono do eu pessoal e partilhamos o eu universal para reencontramos a unidade perdida de todas as coisas.


A propósito:

- O Budismo Zen; WATTS, Allan W.
- Histoire de la Pensée Chinoise; CHENG, Anne.
- The Religion of the Samurai - A Study of Zen Philosophy and Discipline in China and Japan; NUKARIYA, kaiten.


e o valioso: Projecto Guttenberg


Adónis e Afrodite: renovação


“O primeiro homem (Adão) era homem do lado direito e mulher do lado esquerdo, mas Deus rasgou-os em duas metades”, afirma o Bereshit Rahbâ, comentário rabínico ao Talmude, do século V ou VI da nossa era.

No início do cosmos, no caos primordial tudo era indistinto, não-formado, neutro, como no mito cosmológico japonês em que no início Izanagi e Izanami (que representam não só o céu e a terra mas, por visível influência taoista, os princípios masculino e feminino: Yang e Yin) não estavam separados, constituíam um caos que se parecia com um ovo.. Assim, todas as criações são sempre actos de delimitação, de separação, de diferenciação entre opostos. Também entre macho e fêmea.

De maneira muito gráfica, estamos perante a mutilação do andrógino original, sentida como queda, perda, limitação, solidão mesmo. Metade de nós foi brutalmente arrancada, deixando-nos estéreis, ocos, mortais.

E mais uma vez vivemos a angústia da nossa própria contingência, da nossa limitação, porque mais uma vez, como sempre, o outro, o oposto o antagonista nos é essencial.

Há um confronto e um diálogo essencial, vital em todos os sentidos, entre os dois sexos: da luta e competição, ao domínio e submissão, ao reencontro pelo qual a humanidade recupera a sua capacidade criadora, esse reencontro pelo qual a própria vida se regenera.

E, por isso, há em todas as sociedades a nostalgia desse estado primordial de androginia encarada como totalidade.

Muito antes de haver ideias fixas sobre os nossos sistemas reprodutivos, já era claro o imenso poder do sexo sobre homem e sobre a natureza. O sexo é a actividade vital pelo qual o próprio cosmos se reproduz. É pela acção conjunta do princípio feminino e do princípio masculino que crescem as plantas e os animais se reproduzem. É pela energia sexual do cosmos que a vida existe.

Estes dois princípios são vistos não como estando em conflito, mas como “opostos complementares”. É pela sua dualidade, pela sua diferenciação, pelo seu antagonismo que se gera a atracção mútua que lhes permite efectivamente criar a multiplicidade da vida. Por outro lado, é pela sua complementaridade que partilham da natureza do Uno original. Lao-Tze expôs na obra que conhecemos por Livro do Tao, brilhantemente esta ideia tão contraditória: “O Tao engendra Um. Um engendra Dois. Dois engendra Três. Três engendra os dez mil seres.” Apesar de esta formulação nos sugerir “momentos” sucessivos (O Tao engendra Um. O Um engendra Dois...) é preciso entender que, no tempo mítico, estes são acontecimentos não sucessivos nem “históricos”, mas sempre presentes, imanentes à própria substância do tempo.

Para dar o exemplo das sociedades mais antigas, o agricultor vê claramente como a sua seara “morre” todos os anos, para renascer no ano seguinte devido à acção conjugada da terra fértil - feminina - e do seu braço semeador - masculino. Estes são ciclos permanentes dos cosmos no qual o homem se integra.

Esta fertilidade está dependente de rituais cíclicos de renovação. Estes rituais passam muitas vezes pela repetição do casamento sagrado do par primordial: entre o elemento celeste, masculino, activo, fecundador e a terra como o elemento feminino, passivo, germinador. Assim, um dos mistérios solenizados em Eleusis, em setembro, era o do casamento ritual entre Zeus e Deméter, ou em muitas outras sociedades a realização de cópulas rituais, no próprio campo, por épocas de sementeira, ou associações litúrgicas entre o arado como o falo e a terra como vagina receptora da semente, que se encontram por todas as sociedades agrícolas antigas, para não falar das orgias e festivais onde toda a liberdade sexual era permitida, como acto colectivo de celebração da fertilidade, existentes em muitos sítios e idades.

Também merece referência o par egípcio Isis e Osiris. No mito, a morte do deus Osiris (às mãos do seu irmão Set) e a sua ressurreição, pela acção de Isis, está directamente associada à fertilidade dos campos, à regularidade da cheia do Nilo, à renovação da vida. Osíris é, também, o deus dos mortos, que julga as suas acções e decide do seu destino na eternidade. É um deus da morte e um deus da vida, o que para os antigos egípcios não significava nenhum paradoxo. Afinal são apenas dois momentos do mesmo ciclo.

De todos, talvez um dos mais me toca é o mito de Adónis e Afrodite (representações gregas dos babilónios Tammuz e Ishtar) em que Afrodite (Deusa do Amor) e Perséfone (Deusa da morte) disputam o amor do belo Adónis (Deus da Fertilidade e da Vegetação). Pela intervenção de Zeus ficou decidido que Adonis passaria uma parte do ano com Afrodite e outra parte com Perséfone no mundo dos mortos. Mais uma vez, o ritmo das estações do ano. Entre a Morte e a renovação da vida, o Amor é o motor do próprio Cosmos.


A propósito:

- Tratado de História das Religiões; ELIADE, Mircea.

- Mitos, Sonhos e Mistérios; ELIADE, Mircea.
- The Golden Bough: a study of magic and religion; FRAZER, Sir James George.
- Histoire de la pensée chinoise; CHENG, Anne.
- L'Un est l'Autre; BADINTER, Elisabeth.

e a insubstituível Wikipedia.



Ares e Atena



E nascidos do conflito primordial, continuamos a história, conforme nos foi legada: a história da guerra. Do sucesso de uns perante a derrota dos outros, de que não rezará a história.

Esquecemo-nos hoje com demasiada facilidade que somos feitos do precário equilíbrio entre a necessidade do outro e o perigo que o outro representa. Afinal, descendemos de grupos humanos onde a cooperação era um factor essencial - na caça, na luta, na fuga - mas onde a competição era igualmente aguda e permanente. Luta pela segurança, pela comida e pelo sexo. Pois... Como hoje.

E, de facto, somos os descendentes dos mais fortes e dos mais agressivos, dos que sobreviveram, dos que se reproduziram. E não creio que estejamos assim tão longe, afinal.

E fomos fazendo as nossas lutas. Mas tal como tememos o outro, também precisamos dele. Agudamente. E por isso, em todas as religiões, em todas as culturas existe essa intuição da irmandade universal (ou irmandade primordial) do género humano. Por isso, todas as guerras são, por definição, guerras fratricidas.

Os exemplos são mais que muitos e em todos os continentes. O que provavelmente nos é mais familiar, o de Caim e Abel, representa bem o conflito entre pastores nómadas e agricultores sedentários no Médio Oriente Antigo. É um conflito pelo uso da terra, pelos recursos minerais, pela água (e está bem viva, hoje, esta guerra da água!). É um conflito entre dois sistemas de vida e de produção completamente diferentes e, por conseguinte, um conflito entre duas ideologias antagónicas, incompatíveis.

Por um lado, o pastor nómada, tão bem representado pelos patriarcas bíblicos. Homens errantes, livres, seguidos apenas por um grupo familiar ou clã de dimensão mais ou menos reduzida. Sempre à procura das melhores pastagens para os seus rebanhos, desconhecem a noção de propriedade individual da terra. Estes grupos têm uma organização política muito simples, baseada na autoridade pessoal do chefe do clã, que é ao mesmo tempo rei, juiz e sacerdote. Pode haver contactos ou trocas entre as tribos e até alianças, mas nunca a aceitação duradoura de uma autoridade centralizada. Certos líderes carismáticos conseguem unir muitas tribos à sua volta para uma campanha contra outras tribos, por exemplo, mas ninguém se sente parte de um estado – noção que lhes é completamente alheia. Encontramos exemplos deste tipo de estrutura social desde os Hunos de Átila, aos Apaches americanos, aos Hebreus e até nas tribos beduínas que se uniram para combater o domínio turco no século XIX, na Arábia.

Levando uma vida frugal, numa organização social simples, o nómada adora um número mais reduzido de deuses, até porque a sociedade dos deuses é sempre o espelho sublimado da sociedade dos homens. A viagem, o permanente contacto com a natureza, a auto-suficiência da tribo hão de conduzi-lo à intuição monoteísta, ao que parece em datas bastante recuadas. Da mesma forma que não precisa de muitas coisas, o nómada não precisa de muitos deuses.

Por outro lado, o agricultor sedentário, agarrado à terra, à sua terra - que defenderá ferozmente, imerso no barro fértil do delta dos grandes rios. Construtor de celeiros, moinhos, cidades. Criador de grandes trabalhos de irrigação que exigem a cooperação de muitos homens, de países inteiros. Precisa, por isso, de reis, de estados. Precisa de leis, precisa de leis de escritas. Precisa da escrita (uma invenção que só tardiamente os povos nómadas adoptaram). A sofisticação do processo produtivo conduz à emergência de uma sociedade complexa e estratificada.

Por precisar de tantas coisas, o sedentário não tem a bela auto-confiança e auto-suficiência do nómada que depende essencialmente de si próprio. Os povos sedentários tinham (como nós) uma noção muito clara da fragilidade da sua existência. Sabiam que a sua jovem agricultura, a sua frágil estrutura social dependiam de múltiplos factores: da terra - em primeiro lugar, da cheia – em tempo e na medida certa, do sol, da chuva, da ausência de doenças e do peso relativo dos impostos, da benevolência do rei e da sua capacidade de afugentar os inimigos que os cercam, ávidos dos imensos excedentes alimentares que produzem. Por isso o sedentário precisa de múltiplos deuses. Para cada problema inventa um novo deus. Desde as Grandes Mães da fertilidade, de Çatal Höyük, na Anatólia, aos deuses da técnica e do engenho como o Ptah de Menphis, a esses deuses "ideológicos", subtis, que representam a própria ordem estabelecida, a própria organização do cosmos - essencial para o sedentário - como a Deusa Maat egípcia e, claro, deuses da guerra.

A guerra é um facto inevitável entre dois sistemas tão diversos, em competição pelos mesmos recursos. Os hebreus, nómadas que eram, tomaram partido por Abel (o pastor), condenado o agricultor Caim. A vida destes dois tipos de comunidades é marcado por fricções constantes, incursões, razias, guerras por território.

O Islão foi, mais tarde, ainda um produto deste choque. Muhammad escreve a sua visão, numa altura em que a sociedade árabe é dilacerada pelas "vendettas" tribais e pela insubmissão dos vários clãs a qualquer autoridade política ou social. Aliás, o próprio Profeta foi vítima destes conflitos. A ética subtil que desenvolve no Corão consegue manter importantes aspectos da rude independência e apego à liberdade da tradição nómada, valorizando ao mesmo tempo o relacionamento social, o papel do homem da cidade (e a cidade - para onde convergem as caravanas, os homens, as preces - é sempre o ponto central da civilização muçulmana), do comércio, dos ófícios, em diálogo tolerante e pacífico com o outro. Por um lado civilizando o nómada, por outro libertando o sedentário, e preparando a civilização árabe para o papel de primeiro plano que viria a desempenhar na cena mundial.

Mas este conflito continuou e continua, sob muitas formas. Assistimos há poucos anos ao violentíssimo choque entre uma cultura de agricultores (os Hutu) e pastores (os Tutsi) no Ruanda.

E sobre o sangue do irmão, sobre a conquista do outro, foram erguidos os impérios, no esforço de resolver o conflito: civilizar a violência, justificar e dar um sentido ao lado sanguinário da nossa natureza. Organizando o instinto: tentando substituir a guerra selvagem pela guerra justa. Ares (um deus selvagem, insubmisso, bárbaro nos vários sentidos do termo, que traz consigo o medo e o prazer da matança) por Atena (a deusa da guerra, mas também da justiça). Dois irmãos desavindos. Como em todas as guerras. Como hoje.

A propósito:
- A Ilíada, Homero
- Introdução às Primeiras Religiões, Pierre Lévêque
- Bíblia Sagrada

- O Corão

e Encyclopedia Mythica

o princípio: Clio


De uma maneira ou de outra, pelo caminho lento dos séculos trazidos em remotas tradições orais, ou pela aparente iluminação súbita de um sábio genial, ou pela soma de ambos, todos os povos, todas as culturas, incluíram nos seus quadros de pensamento a noção – a intuição, se quisermos – da dinâmica de forças opostas enquanto motor do universo, da imanência do conflito que atravessa o cerne da existência.

Da maneira mais velada e sintética, ou com uma urgente (e como tal sentida) atitude analítica, todas as épocas sentiram, pensaram, viveram esta dicotomia universal. Todas tentaram (tentam) encaixar esse conflito essencial entre todas as coisas, na sua visão do cosmos.

Viveram-na (como nós a vivemos) nos seus múltiplos desdobramentos, máscaras, modos, tempos e intensidades. A luz e as trevas, o bem e o mal, mas também a noite e o dia, o inverno e o verão, o caçador e a presa, o macho e a fêmea, o pai e o filho – e antes disso, o irmão bom e o irmão mau e ainda antes disso o pastor e o agricultor, o nómada e o sedentário, o oleiro e o caçador.

E o rasto da contradição universal perde-se na noite dos tempos, na infância do homem.

De outra maneira, de todas as visões do início do mundo, antes do surgimento e acção criadora do Deus ou do Demiurgo, está ausente o elemento contraditório. A realidade pré-existente é essencialmente unitária, embora naturalmente caótica. Não existem (ou não são distintos) ainda os elementos que, no mundo que conhecemos, criam dinâmicas de conflito / oposição. Existe apenas o caos unitário do universo ainda incriado, desorganizado – inútil? (e este seria todo um outro rumo de raciocínio...)

Assim, pelo verbo, pelo gesto, pelo sopro, pelo acto primordial (o primeiro acto) inauguram a luz onde apenas havia trevas, ou separam a terra das águas, organizam o universo, tornam distinto o que era confuso, individualizam os deuses, os seres, a natureza e, consequentemente, põem em marcha a dinâmica dos contrários. E tantas e tantas vezes, no início, surge sempre uma dupla de realidades antagónicas, o ar e a água (Shu e Tefnut em Heliópolis) o céu e a terra (Uranos e Gaia em Hesíodo ou Rangi e Papa entre os Maoris).

E toda a nossa intuição aponta neste sentido: o primeiro de todos os actos possíveis é sempre um gesto afirmativo, agressivo, de demarcação perante o outro e de afirmação do eu. É no sentido dessa mesma intuição (e estou consciente das dificuldades deste termo, mas não me lembro de nada melhor...) que concebemos, actualmente, o próprio nascimento do universo, como uma explosão - porventura a maior, mais poderosa e radical afirmação de que a matéria é capaz.

E é significativo que, muitas vezes, subsequentemente, como primeiro “acontecimento” no universo recém-criado, ocorra o combate, o conflito, o choque aberto. Assim, com Marduk e Tiammat, Zeus e Cronos, Adão e Eva (conflito, sim!). Cria-se o universo e, com o primeiro conflito, o primeiro choque, o primeiro antagonismo, surge, como disse, o primeiro acontecimento. Inaugura-se a história. E das nove noites de amor entre Zeus e a titã Mnemosine (a memória), nasceram as nove musas, das quais κλέω, a proclamadora, a distribuidora da fama, anunciadora dos feitos dos homens.


A propósito:
- Tratado de História das Religiões, ELIADE, Mircea
- Mito, Mundo e Monoteísmo, CARREIRA, J. Nunes
- Teogonia, HESÍODO
e wikipedia (claro!)

quadro de Johannes Vermeer.