Adónis e Afrodite: renovação


“O primeiro homem (Adão) era homem do lado direito e mulher do lado esquerdo, mas Deus rasgou-os em duas metades”, afirma o Bereshit Rahbâ, comentário rabínico ao Talmude, do século V ou VI da nossa era.

No início do cosmos, no caos primordial tudo era indistinto, não-formado, neutro, como no mito cosmológico japonês em que no início Izanagi e Izanami (que representam não só o céu e a terra mas, por visível influência taoista, os princípios masculino e feminino: Yang e Yin) não estavam separados, constituíam um caos que se parecia com um ovo.. Assim, todas as criações são sempre actos de delimitação, de separação, de diferenciação entre opostos. Também entre macho e fêmea.

De maneira muito gráfica, estamos perante a mutilação do andrógino original, sentida como queda, perda, limitação, solidão mesmo. Metade de nós foi brutalmente arrancada, deixando-nos estéreis, ocos, mortais.

E mais uma vez vivemos a angústia da nossa própria contingência, da nossa limitação, porque mais uma vez, como sempre, o outro, o oposto o antagonista nos é essencial.

Há um confronto e um diálogo essencial, vital em todos os sentidos, entre os dois sexos: da luta e competição, ao domínio e submissão, ao reencontro pelo qual a humanidade recupera a sua capacidade criadora, esse reencontro pelo qual a própria vida se regenera.

E, por isso, há em todas as sociedades a nostalgia desse estado primordial de androginia encarada como totalidade.

Muito antes de haver ideias fixas sobre os nossos sistemas reprodutivos, já era claro o imenso poder do sexo sobre homem e sobre a natureza. O sexo é a actividade vital pelo qual o próprio cosmos se reproduz. É pela acção conjunta do princípio feminino e do princípio masculino que crescem as plantas e os animais se reproduzem. É pela energia sexual do cosmos que a vida existe.

Estes dois princípios são vistos não como estando em conflito, mas como “opostos complementares”. É pela sua dualidade, pela sua diferenciação, pelo seu antagonismo que se gera a atracção mútua que lhes permite efectivamente criar a multiplicidade da vida. Por outro lado, é pela sua complementaridade que partilham da natureza do Uno original. Lao-Tze expôs na obra que conhecemos por Livro do Tao, brilhantemente esta ideia tão contraditória: “O Tao engendra Um. Um engendra Dois. Dois engendra Três. Três engendra os dez mil seres.” Apesar de esta formulação nos sugerir “momentos” sucessivos (O Tao engendra Um. O Um engendra Dois...) é preciso entender que, no tempo mítico, estes são acontecimentos não sucessivos nem “históricos”, mas sempre presentes, imanentes à própria substância do tempo.

Para dar o exemplo das sociedades mais antigas, o agricultor vê claramente como a sua seara “morre” todos os anos, para renascer no ano seguinte devido à acção conjugada da terra fértil - feminina - e do seu braço semeador - masculino. Estes são ciclos permanentes dos cosmos no qual o homem se integra.

Esta fertilidade está dependente de rituais cíclicos de renovação. Estes rituais passam muitas vezes pela repetição do casamento sagrado do par primordial: entre o elemento celeste, masculino, activo, fecundador e a terra como o elemento feminino, passivo, germinador. Assim, um dos mistérios solenizados em Eleusis, em setembro, era o do casamento ritual entre Zeus e Deméter, ou em muitas outras sociedades a realização de cópulas rituais, no próprio campo, por épocas de sementeira, ou associações litúrgicas entre o arado como o falo e a terra como vagina receptora da semente, que se encontram por todas as sociedades agrícolas antigas, para não falar das orgias e festivais onde toda a liberdade sexual era permitida, como acto colectivo de celebração da fertilidade, existentes em muitos sítios e idades.

Também merece referência o par egípcio Isis e Osiris. No mito, a morte do deus Osiris (às mãos do seu irmão Set) e a sua ressurreição, pela acção de Isis, está directamente associada à fertilidade dos campos, à regularidade da cheia do Nilo, à renovação da vida. Osíris é, também, o deus dos mortos, que julga as suas acções e decide do seu destino na eternidade. É um deus da morte e um deus da vida, o que para os antigos egípcios não significava nenhum paradoxo. Afinal são apenas dois momentos do mesmo ciclo.

De todos, talvez um dos mais me toca é o mito de Adónis e Afrodite (representações gregas dos babilónios Tammuz e Ishtar) em que Afrodite (Deusa do Amor) e Perséfone (Deusa da morte) disputam o amor do belo Adónis (Deus da Fertilidade e da Vegetação). Pela intervenção de Zeus ficou decidido que Adonis passaria uma parte do ano com Afrodite e outra parte com Perséfone no mundo dos mortos. Mais uma vez, o ritmo das estações do ano. Entre a Morte e a renovação da vida, o Amor é o motor do próprio Cosmos.


A propósito:

- Tratado de História das Religiões; ELIADE, Mircea.

- Mitos, Sonhos e Mistérios; ELIADE, Mircea.
- The Golden Bough: a study of magic and religion; FRAZER, Sir James George.
- Histoire de la pensée chinoise; CHENG, Anne.
- L'Un est l'Autre; BADINTER, Elisabeth.

e a insubstituível Wikipedia.



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