A Pérsia clássica foi sempre uma zona de passagem, de comércio, contacto e conflito (claro!) entre oriente e ocidente. No rasto das caravanas da rota da seda, vieram homens, deuses, ideias, línguas e, obviamente, conquistadores. Aí, a criação de uma grande unidade política estável, assente numa autoridade centralizada, foi um processo muito mais complexo e de menor continuidade.
A própria paisagem iraniana é feita dos contraste entre as grandes cadeias montanhosas e os vales fertéis e os vastos desertos. As guerras são frequentes e prolongadas. Os homens, as línguas e os deuses são múltiplos e díspares.
Há assim uma clara intuição de que a natureza do mundo é problemática. A existência é problemática. O conflito é.
Aqui não falamos de complementariedades nem de atracção dos opostos. Perante esta realidade os antigos iranianos não concebiam nenhuma reconciliação suave da multiplicidade do mundo.
Na profecia trazida por Zoroastro (também conhecido por Zaratrustra) dois princípios irredutivelmente antagónicos regem o mundo: Ahura Mazda e Angra Mainyu.
Ahura Mazda é o supremo criador do universo, da ordem do universo, representa o bem, a verdade, a luz, a fertilidade, a vida.
Do outro lado, Angra Mainyu (ou Ahriman), o nosso familiar demónio, representando o mal, a mentira, a escuridão, a morte.
Perante este antagonismo, o homem é confrontado com a escolha: ou se torna um soldado de Ahura Mazda, e contribui, por boas acções, boas palavras e bons pensamentos, para a realização da asha (a ordem universal), ou segue Ahriman, e opta pelo mal, pela desordem, pela mentira, pela morte.
Não há fugas nem subterfúgios neste combate. A nada, nem a ninguém é permitida a neutralidade na batalha entre o bem e o mal.
O conflito é assumido, integrado na ordem natural das coisas. A existência é aceite na sua integralidade, nas suas diversas vertentes. Ao escolhermos o lado da vida, aceitamos toda a vida. E por isso os seguidores Ahura Mazda recusam o ascetismo, abjuram o celibato, valorizam a alegria e os prazeres terrenos como parte integrante da asha. Amar e fazer o bem, defender a ordem contra o caos, passa também por gostar de viver, pelo prazer de se ter um sentido, um dever a cumprir.
O homem torna-se um elemento activo, torna-se parte do grande combate cósmico. Pelo uso da sua liberdade, toma uma opção escatológica no conflito.
O zoroastrismo nega ao homem a paz de espírito budista da calma integração nos fluxos cósmicos, mas dá-lhe, em troca, uma escatologia. Um caminho, um dever, um sentido.
E, mais do que isso, dá-lhe a liberdade de escolher.
Esta é a grande inovação, que mais tarde será assumida pelas três grandes religiões do Livro: o livre arbítrio. O homem pode escolher. Este é o fundo do drama humano: entre a liberdade de traçar o próprio destino e a angústia insolúvel da escolha, da rejeição de um caminho à aceitação de outro.
O homem é um ser criado, por isso contingente, mas possui a complexidade suficiente para poder optar e não ser predeterminado. Com a liberdade, advém também, claro, a responsabilidade das consequências da escolhas que faz. Mas vemos, pela primeira vez, o homem a assumir um papel importante nos grandes duelos cósmicos. Estamos perante uma espécie de maioridade metafísica da espécie humana perante o criador, que de pai se transforma em companheiro de armas.
Num cosmos problemático, dual, a escolha do homem torna-se central nos destinos do universo. Mais do que o sucesso imediato (histórico) dos esforços humanos, joga-se, dentro de cada um de nós, o conflito primordial e contínuo dos princípios opostos e o destino final do universo: a vitória do bem e a derrota do mal.
A propósito:
- e os amigos habituais.
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