Shinto - conviver com os deuses

A antiga religião popular japonesa foi, como em tantos outros sítios, animista. Os homens começaram a adorar, a atribuir virtudes e poderes a pedras, rios, animais ou montanhas. Tudo o que parecesse ser excepcional, singular partilhava dos poderes originários dos criadores do mundo – os já aqui mencionados Izanagi e Izanami – todos eram kami, espíritos ou deuses.

Assim, também todos os homens, após a morte se tornam num kami, independentemente dos seus méritos e trabalhos. Os kami, colectivamente chamados Yaoyorozu no Kami (qualquer coisa como os “oito milhões de kami”), não têm uma virtude específica, ou uma qualidade moral divina. São falíveis, erram, podem ser benévolos ou nocivos, podem exercer vinganças por ofensa recebidas em vida, ou trazer boa fortuna.

Então, mais do fixar cânones e dogmas, o Shinto nasceu de uma colecção de rituais destinados a propiciar estes voláteis espíritos - que habitam o mesmo mundo que nós e que estão em toda a parte. A “adesão” ao Shinto nem sequer depende, aliás, de qualquer crença particular, nem isso tem qualquer importância. O que é relevante, o que é substancial, o que contribui para manter o equilíbrio e a harmonia cósmica é o próprio ritual. Assim, mais do que uma religião, no sentido tradicional da palavra, o Shinto é um conjunto de práticas e de tradições vividas essencialmente em família, no pequeno altar doméstico destinado aos antepassados, ou nas dezenas de grandes festivais colectivos que prestam culto aos grandes kami. Relativamente pouca gente se diz “shintoísta”, mas muita muita gente pratica, pacificamente, rituais. Mais do que a realização de uma "vontade dos deuses", do que se trata aqui, verdadeiramente, é mais de uma etiqueta cósmica, de actos de cortesia para com os kami, em que a observação dos rituais garante a harmonia e as boas relações entre mundos paralelos.

Em determinada fase da história, o Shinto foi transformado em ideologia unificadora do Japão, até por ser naturalmente partilhado por todo o seu povo e, mesmo, em religião de estado, tendo sido feitas codificações de mitos e rituais, quer para firmar uma genealogia divina para a Família Imperial, quer para afirmar um conjunto de ideias “nacionais” japonesas perante as influências estrangeiras, ocidentais e chinesas. Modernamente, o Shinto foi mesmo usado como símbolo das aspirações imperialistas japonesas e arma política da direita tradicionalista. Nesta, como em tantas outras religiões, aquilo de que os deuses gostam mesmo é de política...

Há uma intuição que se desenvolveu em muitíssimos sítios e épocas da proximidade natural entre este mundo e o outro, entre o natural e o fantástico, entre o palpável e o numinoso. Os kami estão em todo a parte: nos objectos do dia-a-dia, mas também na fertilidade dos campos e dos animais, no monte Fuji, e no espírito dos nossos antepassados. Homens e deuses convivem lado a lado, numa harmonia que o ritual garante. E a fronteira entre os dois mundos é tão real e tão ilusória quanto a espessura de um Torii (o portão ritual, presente nos grandes templos Shinto), que representa, tão ao gosto japonês – apontando directamente – a proximidade absoluta entre os dois mundos.


A propósito:

- Internet Sacred Texts Archive
-
Encyclopedia of Shinto
e como sempre
- wikipedia

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