Hajj

A peregrinação a Meca inicia-se no oitavo dia do Thul-Hijjah, o 12º mês do ano do calendário lunar islâmico. O peregrino enverga o Kafan (duas simples peças de tecido de algodão branco) que utilizará durante os restantes cinco dias da peregrinação.

A mudança de vestes simboliza a assumpção da condição de peregrino, entrando no estado de Ihram, em que não existem diferenças e todos se vêm colectivamente como um e individualmente como homens. Nada mais. Cada um dos peregrinos virou as costas ao seu eu próprio para se virar para deus.

E há uma tónica forte nesta ideia de reencontro e igualdade entre os homens. Para o islâmico, o mundo, o mundo dos homens é a Umma, a comunidade dos crentes, a profunda união entre todos os que seguem o deus único.

O conceito da Umma cala ainda hoje muito fundo na mentalidade islâmica e continua ainda hoje a esboçar-se nos sonhos de recriação da unidade política dos povos islâmicos. Durante a Hajj esse sonho torna-se real e vemos surgir da multidão vestida de branco um vislumbre dessa sociedade que se une no mesmo louvor a deus: o grande equalizador.

Aliás, esse sentimento de colectivo é ainda mais reforçado durante o Tawaf, a circulambulação em torno da Ka'bah. Caminha-se levado pela multidão, no mesmo passo, na mesma vaga branca de humanidade, de face voltada para o santuário do deus único.

Interessa ter presente que a Ka'bah, sendo o centro da fé islâmica, o lugar para onde se viram os muçulmanos de todo o mundo quando rezam (a qibla), se trata apenas de um cubo de pedra, coberto de panejamentos negros, que tem no seu interior uma sala vazia.

Deus, aqui, é o absolutamente outro, o irrepresentável, o inatingível pelos sentidos humanos. De maneira muito directa a Ka'abah representa o significado mais profundo do sagrado: uma sala vazia, cheia apenas com o murmúrio da multidão que reza no exterior.

Como outro pormenor interessante, num dos cantos exteriores da Ka'abah está colocada a al-Hajar-ul-Aswad (literalmente, a pedra negra). Trata-se de uma pequena e antiquíssima pedra (segundo alguns, um meteorito) que já era alvo de adoração pelos povos arábicos muito antes de Muhammad. De acordo com a tradição islâmica, descendeu dos céus no tempo de Adão e Eva e era completamente branca e resplandecente. Com o passar do tempo, tornou-se negra com os pecados dos homens. O profeta, com a inteligência e capacidade diplomática que revelou em toda a sua história, soube incluí-la na nova religião que forjou. Os crentes consideram-na "a mão de deus" e tentam tocar-lhe (ou pelo menos apontar para ela) a cada volta que dão à Ka'abah, como símbolo da aliança entre homem e deus.
O passo seguinte da Hajj é o Sa'i: o peregrino deve correr sete vezes entre os montes Safa e Marwah (hoje um percurso coberto dentro mesmo da Grande Mesquita). Trata-se da representação da tribulação de Hajar (donde a expressão Hajj), escrava de Abraão, mãe dos futuros profetas e figura central no Islão, que correu sete vezes este percurso em busca de água para o seu filho Ismael.

Representa muito simplesmente a necessidade de esforço e esperança para encontrar da natureza o necessário para uma vida material completa e feliz, o que também deve ser um dos objectivos do crente. Valoriza-se, portanto o esforço e o trabalho desenvolvido. O crente não pode ficar parado à espera de milagres, deve esforçar-se, dar o seu melhor e deus permitirá a recompensa.
Depois da necessidade espiritual da Tawaf, a necessidade material da Sa'i, que se completa com o beber da água do poço do Zam-zam, que fora revelado por deus a Hajar, episódio mencionado também na bíblia em Gn 16:14. No meio da desértica arábia que melhor sinal do poder de deus do que um rio a correr no meio do deserto? Que pode ser mais sagrado e dever mais à generosidade divina do que o acto simples, natural e humano de matar a sede?

Este ponto marca o fim dos passos da peregrinação em Meca e o início da chamada "Grande Peregrinação". Na primeira etapa, pretende-se que o crente ganhe consciência de si como parte de uma comunidade humilde perante deus. Na etapa que agora se inicia busca-se a essência da divindade, com a visita e permanência no Monte Arafat.

O monte Arafat é considerado o sítio onde Adão e Eva se reuniram, após terem sido perdoados por deus, após 200 anos de afastamento em função de terem comido do fruto proibido. Considera-se que este pecado e arrependimento originais conduziram o homem, pela primeira vez a um estado de responsabilidade pelas suas acções. Simbolicamente, a primeira etapa significava a consciência de si, a segunda representa a sabedoria, enquanto a terceira, agora em Mina, representa a ascenção para deus.

Após a visita ao Monte Arafat os peregrinos dirigem-se à planície de Muzdalifah onde recolhem 49 pedras (7x7, sendo o número sete um símbolo de perfeição) para a cerimónia de apedrejamento do demónio (Ramy al-Jamarat).

Segue-se um sacríficio animal que corresponde à reencenação do sacrifício de Ismael por Abraão. Esse acto em que deus exige a Abraão que lhe sacrifique o seu único filho é celebrado pelos muçulmanos de todo o mundo como o símbolo maior da submissão do homem perante deus. Mesmo Abraão, o mais perfeito dos homens, o escolhido de deus, está sujeito à vontade divina.

Em todos os passos da Hajj somos confrontados com esta ideia da equidistância entre todos os homens e deus. Seja ao assumir a túnica branca independentemente da língua, cultura ou posição social, seja dando as sete voltas à Ka'abah ou recriando a atribulação da mais humilde das mulheres, Ajar. É sobre esta equidistância em relação a deus que se constrói a igualdade dos homens.

A distância de qualquer ponto ao centro de um universo infinito será sempre infinita também. O centro é inatingível, como é tão bem representado pela Ka'abah vazia. Não podemos vencer esta absoluta distância, mas é nosso destino percorrê-la. Ao homem, imperfeito, apenas é dado caminhar para a perfeição.


a propósito:

a Hajj passo a passo
a Hajj obtido na Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project
tudo sobre a Ka'bah
e o sítio do costume

Lévi-Strauss - a busca do sentido

Com efeito, que outra coisa aprendi dos mestres que escutei, dos filósofos que li, das sociedades que visitei e desta própria ciência de que o Ocidente extrai o seu orgulho senão fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Buda junto da árvore?
Todo o esforço para compreender destrói o objecto pelo qual nos tínhamos interessado, em proveito de um objecto de natureza diversa; exige da nossa parte um novo esforço que o elimina, em proveito de um terceiro, e assim por diante até que tenhamos acesso à única presença duradoura que é aquela em que se desvanece a distinção entre o sentido e a ausência de sentido: a mesma de onde partíramos. Eis que já são decorridos 2500 anos anos desde que os homens descobriram e formularam essas verdades. Desde então, nada descobrimos, a não ser - experimentando, umas após outras, todas as portas de saída - outras tantas demonstrações suplementares da conclusão à qual teríamos querido escapar. (...)
Essa grande religião do não-saber não se baseia na nossa deficiência em compreender. Atesta a nossa aptidão, eleva-nos até ao ponto em que descobrimos a verdade, sob a forma de uma exclusão mútua do ser e do conhecer. Por meio de uma audácia suplementar, ela - tal como o marxismo - reconduziu o problema metafísico ao da conduta humana.(...)
Entre a crítica marxista que liberta o homem das primeiras cadeias - ensinando-lhe que o sentido aparente da sua condição se desvanece desde que ele aceite ampliar o objecto que considera - e a crítica budista que completa a libertação não há nem oposição nem contradição. Cada uma faz o mesmo que a outra a um nível diferente. A passagem entre os dois extremos é garantida por todos os progressos do conhecimento, que um movimento de pensamento indissolúvel, que vai de Oriente a Ocidente e se deslocou de um para outro - talvez apenas para confirmar a sua origem - , permitiu à humanidade permitiu à humanidade realizar no espaço de dois milénios. Assim como as crenças e superstições se dissolvem quando se encaram as relações reais entre os homens, a moral cede à história, as formas fluídas dão lugar às estruturas e a criação ao nada.(...)
Ao deslocar-se nos seus limites, o homem transporta consigo todas as posições que já ocupou e todas as que ocupará. Está simultâneamente em toda a parte; é uma multidão que avança de frente, recapitulando em cada instante uma totalidade de etapas. Pois vivemos em vários mundos, cada um mais verdadeiro do que aquele que ele contém e ele próprio falso em relação àquele que o engloba. Uns conhecem-se pela acção, outros vivem-se, pensado-os, mas a contradição aparente, que resulta da sua coexistência, resolve-se no constrangimento que sentimos reconhecer um sentido aos mais próximos e recusá-lo aos mais distantes; quando a verdade consiste numa dilatação progressiva do sentido, mas em ordem inversa e exagerada até à explosão.
(...) A contradição permanece apenas quando isola os extremos; para que serve agir, se o pensamento que orienta a acção conduz à descoberta da ausência de sentido? Mas essa descoberta não é imediatamente acessível: é preciso que eu a pensa e não posso pensá-la de uma só vez. Que as etapas sejam doze, como na Boddhi, que sejam mais ou menos numerosas, existem todas ao mesmo tempo e, para alcançar o fim, sou perpétuamente solicitado a viver situações, cada uma das quais exige algo de mim: estou obrigado aos homens como estou ao conhecimento. A história, a política, o universo económico e social, o mundo físico e o próprio céu cercam-me de círculos concêntricos dos quais não me posso evadir pelo pensamento sem conceder a cada um deles uma parcela da minha pessoa. (...)
Tal como o indivíduo não está só no grupo e cada sociedade não está só entre as outras, o homem não está só no universo. Assim que o arco-íris das culturas humanas tiver acabado de afundar-se no vazio cavado pelo nosso furor; enquanto estivermos presentes e existir um mundo - esse arco ténue que nos une ao inacessível permanecerá: mostrando a via inversa à da nossa escravidão e da qual, na falta de a percorrermos, a contemplação proporciona ao homem o única favor que ele sabe merecer: suspender a marcha, reter o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as fendas abertas no muro da necessidade e a concluir a sua obra, ao mesmo tempo que abandona a sua prisão; esse favor que toda a sociedade ambiciona, quaisquer que sejam as suas crenças, o seu regime político e o seu nível de civilização; onde ela situa o seu ócio, o seu prazer, repouso e liberdade; oportunidade fundamental para a vida, de se desligar, e que consiste - adeus, selvagens! adeus, viagens! - durante os breves intervalos em que a nossa espécie suporta interromper a sua faina de colmeia em captar a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume mais sábio que os nossos livros, respirado no âmago de um lírio; ou no piscar de olhos, cheio de paciência, serenidade e perdão recíproco que um entendimento involuntário permite,por vezes, trocar com um gato.

Claude Lévi-Strauss
Triste Trópicos
Edições 70

A propósito:
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