o sonho de Amarna

Mais do que qualquer outra, a religião egípcia foi, desde tempos muito recuados, dominada pelo culto solar. Os deuses de atributos solares são dominantes no panteão egípcio (Atum, Horus, Ra) e numerosos outros são-lhe associados, como Chnum-Ra, Min-Ra e Amon-Ra, por exemplo.

A par dos deuses da vegetação e da fertilidade, que têm um papel fundamental na sobrevivência do Egipto, os deuses solares representam a mística da soberania do faraó, que era pessoalmente identificado com o deus-sol. O sol, dominante e solitário no céu, inconstante e cíclico, dador de vida e luz mas também destruidor.
O sol fértil das searas maduras e o sol abrasador do deserto. Imperscrutável. Inalcançável mas próximo. Como está escrito num dos hinos a Ra do Império Novo: "(...) tu estás elevado acima de todo o país. / Os teus raios rodeiam as terras / até aos limites da criação. / Tu és Rè; tu submeteste os povos até às suas fronteiras. / Tu os domas para teu filho [o faraó], teu bem-amado. / Tu estás distante, mas teus raios estão sobre a Terra; / estás à vista de todos, mas ninguém percebe a tua marcha." [citado por RAMOS, J. A. - História e Cultura pré-clássica II - textos de apoio, Fac. de Letras de Lisboa, policop.]

O sol é o garante da ordem cósmica, da mesma forma que o faraó é o garante da ordem na terra. Como diz J. N. Carreira, "Sem o domínio do Sol, ajudado pela deusa Maat [a deusa da ordem e da justiça], o mundo ruiria. Ruiria, igualmente, sem a presença do faraonato na terra, garante da ordem e realizador da maat. Se a realidade se afastava da teoria, como na Época Baixa, tanto mais necessário se tornava vincar abstractamente a figura e a função do faraó. A instituição do faraonato divino é o lugar geométrico da convergência das esferas antropológica e cosmológica. Desmoronada a ordem social, a terra deixa de reproduzir o céu. O curso solar já não tem correspondência no bem-estar do país."

Assim, no fim do Segundo Período Intermediário (entre os séculos XVII e XVI a.c.), os egípcios logram por fim expulsar os invasores Hicsos e restaurar a unidade territorial e o estado faraónico, inaugurando o período conhecido por Império Novo. Assistimos não só à pacificação do país mas também, e pela primeira vez na sua história, à sua ascensão ao estatuto de potência regional. De facto, as invasões de que fora alvo ensinaram ao Egipto que teria de buscar a segurança muito para lá das suas fronteiras. Tropas egípcias conquistam a Palestina e a Síria e os faraós tornam-se jogadores activos - e muitas vezes determinantes - do xadrez político e diplomático do próximo oriente.

Todas as perturbações e agitação política reconduzem à necessidade do fortalecimento do poder real e, consequentemente da sua afirmação ideológico-religiosa: o culto do deus sol, Amon-Ra. O aumento da importância do culto solar, a par das influências vindas de oriente, vieram preparar a grande ruptura filosofico-religiosa do chamado período de Amarna.

Assim, em 1350 a.c., Amenófis IV sucede a seu pai Amenófis III. O jovem faraó mostra grande interesse pelos estudos filosóficos e teológicos e menor aptidão guerreira. Aliás, durante este período veremos vários recuos do poder e influência egípcios no próximo oriente. A partir do sexto ano do seu reinado, assistimos a um conjunto de mudanças radicais que virão abalar todo o país.

O novo faraó impõe o culto de um deus único: Aton, o disco solar; e altera o seu próprio nome para Akhenaton (algo como: "Aton está contente"). Mas vai muito mais longe: manda encerrar os templos de Amon e apagar os seus nomes dos antigos monumentos, desferindo um profundo golpe no poderoso clero de Amon que as circunstâncias políticas tinham, até aí beneficiado. Além disto, decide abandonar a antiga cidade de Tebas e construir uma nova capital: Akhetaton ("o horizonte de Aton"), a que chamamos modernamente, Tell el-Amarna.

Tratou-se de uma ruptura sem precedentes. De um panteão que apesar de hierarquizado era fluído, aberto, com um sem número de divindades que se fundiam e entrecruzavam passamos para o culto de um único deus. Embora, como vimos, de há muito tempo que se vinha afirmando a supremacia do deus solar, as mentalidades não estavam preparadas para este salto e o Egipto entra em verdadeiro choque cultural. Talvez por isso, logo após a sua morte, o seu sucessor Tutankhamon, manda arrasar Amarna, destruir os templos de Aton e reinstitui as antigas divindades.

Aton, ao contrário dos antigos deuses que assumiam formas simbólicas semi-humanas, semi-animais, era representado apenas como um disco solar. Esta imagem mais simples corresponde à interpretação de Aton como o primeiro princípio. "A descoberta, a penetração cognitiva que revolucionou a imagem egípcia do mundo quase ao jeito de uma viragem coperniciana consistiu precisamente nessa inesgotável riqueza de fenómenos que podia ligar-se ao movimento e irradiação do sol e foi condensada pela nova teologia solar numa frase, a saber, que toda a vida, todo o ser e toda a realidade são pura e simplesmente uma criação do sol, criação continua de novo realizada em cada dia. Sem deixar o horizonte teológico, a especulação de Amarna é, antes de mais, filosofia natural.", nas palavras de J. Assman [citado por Carreira, J. N. - Filosofia Antes dos Gregos, pg 80]

Deixa de haver uma multiplicidade de princípios e de criadores do universo. Aton é o único princípio actuante e eficaz no cosmos. Mais do que negar os outros deuses, o que se faz é afirmar a sua absoluta dependência perante o sol. Como é dito num dos hinos a Aton: "porque tu és o Disco do dia colocado em cima do universo." [RAMOS, J. A.; op. cit.]

A nova religião, demasiado filosófica para o gosto egípcio, nunca se torna popular. A noção de um deus transcendente, princípio único da realidade, deixava de fora os problemas da piedade pessoal, da morte e da vida no além, ainda tão marcados na mentalidade egípcia.

Por outro lado, Akhenaton continua o processo de afirmação da prerrogativa divina do poder real e na identificação entre o faraó e deus. Assim, o faraó é o filho de Aton e o seu único profeta. A família real surge divinizada nas representações oficiais.


Também no campo da arte Akhenaton vai causar profundas mudanças. Desde logo, ao proibir a representação dos deuses tradicionais e impor a representação de Aton apenas como um disco solar, tira aos artistas egípcios o essencial dos seus temas tradicionais. Assim, a arte do período de Amarna vira-se para a representação de cenas da vida familiar do rei, nalgumas delas com uma sensibilidade tocante, pela forma como transmitem as demonstrações de afecto de Akhenaten para a sua esposa Neferiti e para as suas filhas, sempre sob os raios benfazejos de Aton, em contraste com as antigas poses frias e hieráticas dos anteriores faraós.

Por outro lado, as próprias características físicas dos representados alteram-se. Ostentam uma face alongada e lábios grossos, figuras um pouco distorcidas, com ventres e seios salientes. Ainda, o naturalismo das expressões é marcante, como no famoso busto de Nefertiti, que foi encontrado na oficina do escultor da corte em Amarna. A intensa actividade construtiva do rei permitiu que os artistas da nova era pudessem dar largas à sua criatividade, criando uma nova linguagem artística que vai sobreviver à destruição causada pelos que pretenderam apagar da história do Egipto a memória do faraó herético e deixar uma marca perene na arte de períodos posteriores.

Apesar de incompreendida pelo seu tempo, a mensagem de Akhenaton atravessou os séculos e lançou as sementes da compreensão da divindade como princípio universal único, criador e regenerador permanente do cosmos: A visão do homem que abraça os seus filhos aos, sob a terna protecção dos raios de Aton.

A propósito:

- ALDRED, Cyril - Egyptian art, Thames and Hudson, 1980
- CARREIRA, J. N. - Mito, Mundo e Monoteísmo, Pubs. Europa-América, 1994
- CARREIRA, J.N. - Filosofia antes dos Gregos,
Pubs. Europa-América, 1994
- ELIADE, Mircea - Tratado de História das Religiões, Asa, 1992
- RAMOS, J. A. - História e Cultura pré-clássica II - textos de apoio, Fac. de Letras de Lisboa, (policopiado)

- Amarna, o sítio arqueológico
- A Arte do Período de Amarna
- Akhenaton na Internet Sacred Texts Archive

e como sempre: Akhenaton na Wikipedia

Santiago - Campo de Estrelas

Reza a lenda que no ano 813 d.c. o eremita Pelágio viu cair do céu uma chuva de estrelas (donde o nome Compostela = Campus Stellae (lat.) campo de estrelas), sobre o bosque de Libredon, perto de Iria Flávia, actual Padron, na Galiza. Aí encontrou um sepulcro com um corpo degolado, com a cabeça debaixo do braço, que identificou como o Apóstolo Santiago Maior. O Rei das Astúrias, Afonso II, o casto decide visitar o local e manda aí construir uma capela, tornando-se, assim, o primeiro peregrino da história. A lenda espalhou-se rapidamente e peregrinos começaram a afluir dos vários cantos da Europa cristã.

Para os reis cristãos do ocidente peninsular esta descoberta foi um verdadeiro golpe de sorte. A crescente importância religiosa do santuário permitiu-lhes obter algum prestígio, legitimação e reconhecimento internacional para os seus estados recém formados, sendo um poderoso reforço para a ideia da cruzada do ocidente, visando expulsar da Península a presença do Islão.

Santiago Maior, de acordo com os Evangelhos era um pescador da Galileia, irmão do Apóstolo João. Ainda de acordo com o livro dos Actos dos Apóstolos, terá sido degolado por ordem de Herodes Agripa, em Jerusalém, no ano 44 d.c.. No entanto textos posteriores mencionam que, em vida, Santiago fora enviado para evangelizar a península, e é num regresso à Palestina que sofre o martírio. O seu corpo terá sido, então levado para a Galiza pelos seus discípulos. Estes factos são discutíveis (e discutidos), mas mencionados em diversas fontes medievais. O próprio monge inglês Beda,
o Venerável (673- 735) afirma que o seu corpo está na Galiza. No entanto, pouco mais se sabe sobre a vida e pregação de Santiago.

A descoberta de um relíquia desta importância, de um dos Apóstolos do círculo íntimo de Cristo, veio, nas mentes dos homens de então, redimir uma península que fora, pelos seus pecados, abandonada por deus ao Islão. Santiago tornar-se-à um vector de unidade entre os novos reinos cristãos, o patrono dos combates da reconquista e o símbolo do renascimento da Espanha cristã.
Do simples pescador da Galileia, evangelizador das Espanhas para o Santiago matamouros, guerreiro da cristandade, defensor da unidade cristã da península.

Surpreende o enorme e rápido sucesso do culto Jacobeu (de Jacob = Tiago). A partir do século XI, apenas 200 anos desde que fora encontrado o túmulo do santo, Santiago de Compostela converteu-se num ponto de peregrinação tão importante como Roma ou Jerusalém. Os escritores muçulmanos referem-se-lhe como o a Meca cristã.


Assim, pelas estradas e caminhos da Europa, milhares de pessoas de todos os estratos sociais convergem para Santiago, desenhando à sua passagem muito mais do que simples itinerários, mas toda a uma complexa rede de trocas, de crenças e de sinais. Nos passos humildes dos peregrinos construiram-se lugares e cidades, igrejas e monumentos, feiras e lugares de troca, fronteiras e influências, linguagens, ritos, símbolos e mitos.

É Garcia de Cortazar que escreve: "Para el hombre medival la peregrinación era una ascesis, la representación sensible de la otra peregrinación, del otro viaje, el que concluía en el cielo." E esta é justamente a questão do Caminho de Santiago como de outras peregrinações. Trata-se não apenas de uma viagem física, mas também de uma viagem espiritual.

Em linguagem simbólica diríamos que há um caminho horizontal - sobre a terra - e um caminho vertical - para deus; realidade tão bem representada pela figura da cruz. Não só símbolo do sacrifício de Cristo como sinal de universalidade, uma vez que aponta simultâneamente em todas as direcções.

Os símbolos tradicionais do peregrino jacobeu são o báculo e a concha de vieira. O báculo é mais um antigo símbolo de ligação entre o alto e o baixo e está presente em muitíssimas religiões. A concha representa um espaço côncavo, receptivo, pronto a receber a esmola e a graça de deus. É o coração do peregrino. A simbologia presente no caminho de Santiago é riquíssima e alvo de muitíssimos estudos e especulações sobre as suas ligações aos templários, aos alquimistas, às antigas religiões populares.

São passos partilhados por variadas religiões: o peregrino vive sempre o afastamento dos quadros de vida mundana, a homogeneização dos estatutos sociais, a simplicidade do trajo e da conduta, a reflexão sobre a relação entre o homem e o sagrado. Há sempre o caminho para um centro sagrado que representa uma espécie de axis mundi. O túmulo de Santiago para o cristão como a Kaa'ba para o muçulmano. As semelhanças não podiam ser mais claras.

Assim, invertendo na viagem os seus termos, o peregrino - o estrangeiro, que se afasta do seu lar - está na realidade numa viagem de regresso a casa. À sua verdadeira casa, junto do infinito. Um caminho de regresso a si próprio e ao seu lugar no cosmos, guiados por esse traço luminoso no céu nocturno: a via láctea - a que os antigos chamavam justamente Caminho de Santiago -, o campo das estrelas.


a propósito:

Muitos e bons estudos sobre o Caminho de Santiago na Biblioteca de Gonzalo de Berceo de Valle Najerilla
Por exemplo:
- LO IMAGINATIVO Y LO REAL EN LA FIGURA DE SANTIAGO de Javier García Turza

Codex Calixtinus (um guia do peregrino do século XII) na Wikipédia

Asociación Galega de Amigos do Camiño de Santiago

Símbolos Fundamentales de Camino de Santiago de Julio Peradejordi

Breve Historia de España
de Fernando García de Cortazar e José Manuel González Vesga

Hajj

A peregrinação a Meca inicia-se no oitavo dia do Thul-Hijjah, o 12º mês do ano do calendário lunar islâmico. O peregrino enverga o Kafan (duas simples peças de tecido de algodão branco) que utilizará durante os restantes cinco dias da peregrinação.

A mudança de vestes simboliza a assumpção da condição de peregrino, entrando no estado de Ihram, em que não existem diferenças e todos se vêm colectivamente como um e individualmente como homens. Nada mais. Cada um dos peregrinos virou as costas ao seu eu próprio para se virar para deus.

E há uma tónica forte nesta ideia de reencontro e igualdade entre os homens. Para o islâmico, o mundo, o mundo dos homens é a Umma, a comunidade dos crentes, a profunda união entre todos os que seguem o deus único.

O conceito da Umma cala ainda hoje muito fundo na mentalidade islâmica e continua ainda hoje a esboçar-se nos sonhos de recriação da unidade política dos povos islâmicos. Durante a Hajj esse sonho torna-se real e vemos surgir da multidão vestida de branco um vislumbre dessa sociedade que se une no mesmo louvor a deus: o grande equalizador.

Aliás, esse sentimento de colectivo é ainda mais reforçado durante o Tawaf, a circulambulação em torno da Ka'bah. Caminha-se levado pela multidão, no mesmo passo, na mesma vaga branca de humanidade, de face voltada para o santuário do deus único.

Interessa ter presente que a Ka'bah, sendo o centro da fé islâmica, o lugar para onde se viram os muçulmanos de todo o mundo quando rezam (a qibla), se trata apenas de um cubo de pedra, coberto de panejamentos negros, que tem no seu interior uma sala vazia.

Deus, aqui, é o absolutamente outro, o irrepresentável, o inatingível pelos sentidos humanos. De maneira muito directa a Ka'abah representa o significado mais profundo do sagrado: uma sala vazia, cheia apenas com o murmúrio da multidão que reza no exterior.

Como outro pormenor interessante, num dos cantos exteriores da Ka'abah está colocada a al-Hajar-ul-Aswad (literalmente, a pedra negra). Trata-se de uma pequena e antiquíssima pedra (segundo alguns, um meteorito) que já era alvo de adoração pelos povos arábicos muito antes de Muhammad. De acordo com a tradição islâmica, descendeu dos céus no tempo de Adão e Eva e era completamente branca e resplandecente. Com o passar do tempo, tornou-se negra com os pecados dos homens. O profeta, com a inteligência e capacidade diplomática que revelou em toda a sua história, soube incluí-la na nova religião que forjou. Os crentes consideram-na "a mão de deus" e tentam tocar-lhe (ou pelo menos apontar para ela) a cada volta que dão à Ka'abah, como símbolo da aliança entre homem e deus.
O passo seguinte da Hajj é o Sa'i: o peregrino deve correr sete vezes entre os montes Safa e Marwah (hoje um percurso coberto dentro mesmo da Grande Mesquita). Trata-se da representação da tribulação de Hajar (donde a expressão Hajj), escrava de Abraão, mãe dos futuros profetas e figura central no Islão, que correu sete vezes este percurso em busca de água para o seu filho Ismael.

Representa muito simplesmente a necessidade de esforço e esperança para encontrar da natureza o necessário para uma vida material completa e feliz, o que também deve ser um dos objectivos do crente. Valoriza-se, portanto o esforço e o trabalho desenvolvido. O crente não pode ficar parado à espera de milagres, deve esforçar-se, dar o seu melhor e deus permitirá a recompensa.
Depois da necessidade espiritual da Tawaf, a necessidade material da Sa'i, que se completa com o beber da água do poço do Zam-zam, que fora revelado por deus a Hajar, episódio mencionado também na bíblia em Gn 16:14. No meio da desértica arábia que melhor sinal do poder de deus do que um rio a correr no meio do deserto? Que pode ser mais sagrado e dever mais à generosidade divina do que o acto simples, natural e humano de matar a sede?

Este ponto marca o fim dos passos da peregrinação em Meca e o início da chamada "Grande Peregrinação". Na primeira etapa, pretende-se que o crente ganhe consciência de si como parte de uma comunidade humilde perante deus. Na etapa que agora se inicia busca-se a essência da divindade, com a visita e permanência no Monte Arafat.

O monte Arafat é considerado o sítio onde Adão e Eva se reuniram, após terem sido perdoados por deus, após 200 anos de afastamento em função de terem comido do fruto proibido. Considera-se que este pecado e arrependimento originais conduziram o homem, pela primeira vez a um estado de responsabilidade pelas suas acções. Simbolicamente, a primeira etapa significava a consciência de si, a segunda representa a sabedoria, enquanto a terceira, agora em Mina, representa a ascenção para deus.

Após a visita ao Monte Arafat os peregrinos dirigem-se à planície de Muzdalifah onde recolhem 49 pedras (7x7, sendo o número sete um símbolo de perfeição) para a cerimónia de apedrejamento do demónio (Ramy al-Jamarat).

Segue-se um sacríficio animal que corresponde à reencenação do sacrifício de Ismael por Abraão. Esse acto em que deus exige a Abraão que lhe sacrifique o seu único filho é celebrado pelos muçulmanos de todo o mundo como o símbolo maior da submissão do homem perante deus. Mesmo Abraão, o mais perfeito dos homens, o escolhido de deus, está sujeito à vontade divina.

Em todos os passos da Hajj somos confrontados com esta ideia da equidistância entre todos os homens e deus. Seja ao assumir a túnica branca independentemente da língua, cultura ou posição social, seja dando as sete voltas à Ka'abah ou recriando a atribulação da mais humilde das mulheres, Ajar. É sobre esta equidistância em relação a deus que se constrói a igualdade dos homens.

A distância de qualquer ponto ao centro de um universo infinito será sempre infinita também. O centro é inatingível, como é tão bem representado pela Ka'abah vazia. Não podemos vencer esta absoluta distância, mas é nosso destino percorrê-la. Ao homem, imperfeito, apenas é dado caminhar para a perfeição.


a propósito:

a Hajj passo a passo
a Hajj obtido na Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project
tudo sobre a Ka'bah
e o sítio do costume

Lévi-Strauss - a busca do sentido

Com efeito, que outra coisa aprendi dos mestres que escutei, dos filósofos que li, das sociedades que visitei e desta própria ciência de que o Ocidente extrai o seu orgulho senão fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Buda junto da árvore?
Todo o esforço para compreender destrói o objecto pelo qual nos tínhamos interessado, em proveito de um objecto de natureza diversa; exige da nossa parte um novo esforço que o elimina, em proveito de um terceiro, e assim por diante até que tenhamos acesso à única presença duradoura que é aquela em que se desvanece a distinção entre o sentido e a ausência de sentido: a mesma de onde partíramos. Eis que já são decorridos 2500 anos anos desde que os homens descobriram e formularam essas verdades. Desde então, nada descobrimos, a não ser - experimentando, umas após outras, todas as portas de saída - outras tantas demonstrações suplementares da conclusão à qual teríamos querido escapar. (...)
Essa grande religião do não-saber não se baseia na nossa deficiência em compreender. Atesta a nossa aptidão, eleva-nos até ao ponto em que descobrimos a verdade, sob a forma de uma exclusão mútua do ser e do conhecer. Por meio de uma audácia suplementar, ela - tal como o marxismo - reconduziu o problema metafísico ao da conduta humana.(...)
Entre a crítica marxista que liberta o homem das primeiras cadeias - ensinando-lhe que o sentido aparente da sua condição se desvanece desde que ele aceite ampliar o objecto que considera - e a crítica budista que completa a libertação não há nem oposição nem contradição. Cada uma faz o mesmo que a outra a um nível diferente. A passagem entre os dois extremos é garantida por todos os progressos do conhecimento, que um movimento de pensamento indissolúvel, que vai de Oriente a Ocidente e se deslocou de um para outro - talvez apenas para confirmar a sua origem - , permitiu à humanidade permitiu à humanidade realizar no espaço de dois milénios. Assim como as crenças e superstições se dissolvem quando se encaram as relações reais entre os homens, a moral cede à história, as formas fluídas dão lugar às estruturas e a criação ao nada.(...)
Ao deslocar-se nos seus limites, o homem transporta consigo todas as posições que já ocupou e todas as que ocupará. Está simultâneamente em toda a parte; é uma multidão que avança de frente, recapitulando em cada instante uma totalidade de etapas. Pois vivemos em vários mundos, cada um mais verdadeiro do que aquele que ele contém e ele próprio falso em relação àquele que o engloba. Uns conhecem-se pela acção, outros vivem-se, pensado-os, mas a contradição aparente, que resulta da sua coexistência, resolve-se no constrangimento que sentimos reconhecer um sentido aos mais próximos e recusá-lo aos mais distantes; quando a verdade consiste numa dilatação progressiva do sentido, mas em ordem inversa e exagerada até à explosão.
(...) A contradição permanece apenas quando isola os extremos; para que serve agir, se o pensamento que orienta a acção conduz à descoberta da ausência de sentido? Mas essa descoberta não é imediatamente acessível: é preciso que eu a pensa e não posso pensá-la de uma só vez. Que as etapas sejam doze, como na Boddhi, que sejam mais ou menos numerosas, existem todas ao mesmo tempo e, para alcançar o fim, sou perpétuamente solicitado a viver situações, cada uma das quais exige algo de mim: estou obrigado aos homens como estou ao conhecimento. A história, a política, o universo económico e social, o mundo físico e o próprio céu cercam-me de círculos concêntricos dos quais não me posso evadir pelo pensamento sem conceder a cada um deles uma parcela da minha pessoa. (...)
Tal como o indivíduo não está só no grupo e cada sociedade não está só entre as outras, o homem não está só no universo. Assim que o arco-íris das culturas humanas tiver acabado de afundar-se no vazio cavado pelo nosso furor; enquanto estivermos presentes e existir um mundo - esse arco ténue que nos une ao inacessível permanecerá: mostrando a via inversa à da nossa escravidão e da qual, na falta de a percorrermos, a contemplação proporciona ao homem o única favor que ele sabe merecer: suspender a marcha, reter o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as fendas abertas no muro da necessidade e a concluir a sua obra, ao mesmo tempo que abandona a sua prisão; esse favor que toda a sociedade ambiciona, quaisquer que sejam as suas crenças, o seu regime político e o seu nível de civilização; onde ela situa o seu ócio, o seu prazer, repouso e liberdade; oportunidade fundamental para a vida, de se desligar, e que consiste - adeus, selvagens! adeus, viagens! - durante os breves intervalos em que a nossa espécie suporta interromper a sua faina de colmeia em captar a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume mais sábio que os nossos livros, respirado no âmago de um lírio; ou no piscar de olhos, cheio de paciência, serenidade e perdão recíproco que um entendimento involuntário permite,por vezes, trocar com um gato.

Claude Lévi-Strauss
Triste Trópicos
Edições 70

A propósito:
Veja: os amigos habituais
e Anthropology Resources on the Internet