Deus à la carte

Nada mais estranho neste tempo planetário do que aquilo que se designa como “regresso do sagrado”: sucesso das sabedorias e religiões orientais (zen, taoísmo, budismo), dos esoterismos e tradições europeias (cabala, pitagorismo, teosofia, alquimia), estudo intensivo do Talmude e da Torah nos Yéchivot, multiplicação das seitas; incontestavelmente, trata-se de um fenómeno muito pós-moderno em ruptura declarada com as Luzes, com o culto da razão e do progresso. Crise do modernismo tomado de dúvidas sobre si próprio, incapaz de resolver os problemas fundamentais da existência, incapaz de respeitar a diversidade das culturas e de trazer a todos a paz e o bem-estar? Ressurreição do recalcado ocidental no momento em que este já não tem qualquer sentido a oferecer-nos? Resistência dos indivíduos e grupos à uniformização planetária? Alternativa ao terror da mobilidade, revalorizando as crenças do passado? (...) Convém, em primeiro lugar, repor no seu justo lugar a atracção de que actualmente gozam as múltiplas formas de sacralidade. O processo de personalização tem por efeito uma deserção sem precedentes da esfera sagrada, o individualismo contemporâneo não pára de minar os fundamentos do divino (...) Mais ainda, a própria religião é arrastada pelo processo de personalização: é-se crente mas à lista, conserva-se este dogma e elimina-se aquele, misturam-se os Evangelhos com o Corão, o zen ou o budismo, a espiritualidade entrou na época caleidoscópica do super-mercado e do self-service. O turn over, a desestabilização investiu o sagrado ao mesmo título que o trabalho ou a moda: durante algum tempo cristão, alguns meses budista, alguns anos discípulo de Krishna ou de Maharaj Ji. A renovação espiritual não resulta de uma ausência trágica de sentido, não é uma resistência à dominação tecnocrática, mas, causada pelo individualismo pós-moderno, reproduz a sua lógica flutuante. A atracção do religioso é inseparável da dessubstancialização narcísica, do indivíduo flexível em busca de si próprio, sem referenciais nem certezas – nem sequer a do poder da ciência – não é de ordem diferente da atracção efémera, mas intensa, por esta ou aquela técnica relacional, dietética ou desportiva. Necessidade de o individuo se redescobrir a si próprio ou de se aniquilar enquanto sujeito, exaltação das relações interpessoais ou da meditação pessoal, extrema tolerância e fragilidade podendo consentir nos imperativos mais drásticos, o neo-misticismo participa da gadgetização personalizada do sentido e da verdade, do narcisismo psi, seja qual for a referência ao Absoluto que lhe subjaz. Longe de ser antinómica em relação à lógica maior do nosso tempo, o ressurgimento das espiritualidades e esoterismos de toda a espécie não fez mais do que cumpri-la, aumentando o leque de escolhas e possibilidades da vida privada, permitindo um cocktail individualista do sentido de acordo com o processo de personalização.

Gilles Lipovetsky - A Era do Vazio - Ensaios sobre o individualismo contemporâneo
trad. Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria
Relógio d'Água Editores, 1989

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