Reza a lenda que no ano 813 d.c. o eremita Pelágio viu cair do céu uma chuva de estrelas (donde o nome Compostela = Campus Stellae (lat.) campo de estrelas), sobre o bosque de Libredon, perto de Iria Flávia, actual Padron, na Galiza. Aí encontrou um sepulcro com um corpo degolado, com a cabeça debaixo do braço, que identificou como o Apóstolo Santiago Maior. O Rei das Astúrias, Afonso II, o casto decide visitar o local e manda aí construir uma capela, tornando-se, assim, o primeiro peregrino da história. A lenda espalhou-se rapidamente e peregrinos começaram a afluir dos vários cantos da Europa cristã.
Para os reis cristãos do ocidente peninsular esta descoberta foi um verdadeiro golpe de sorte. A crescente importância religiosa do santuário permitiu-lhes obter algum prestígio, legitimação e reconhecimento internacional para os seus estados recém formados, sendo um poderoso reforço para a ideia da cruzada do ocidente, visando expulsar da Península a presença do Islão.
Santiago Maior, de acordo com os Evangelhos era um pescador da Galileia, irmão do Apóstolo João. Ainda de acordo com o livro dos Actos dos Apóstolos, terá sido degolado por ordem de Herodes Agripa, em Jerusalém, no ano 44 d.c.. No entanto textos posteriores mencionam que, em vida, Santiago fora enviado para evangelizar a península, e é num regresso à Palestina que sofre o martírio. O seu corpo terá sido, então levado para a Galiza pelos seus discípulos. Estes factos são discutíveis (e discutidos), mas mencionados em diversas fontes medievais. O próprio monge inglês Beda, o Venerável (673- 735) afirma que o seu corpo está na Galiza. No entanto, pouco mais se sabe sobre a vida e pregação de Santiago.
A descoberta de um relíquia desta importância, de um dos Apóstolos do círculo íntimo de Cristo, veio, nas mentes dos homens de então, redimir uma península que fora, pelos seus pecados, abandonada por deus ao Islão. Santiago tornar-se-à um vector de unidade entre os novos reinos cristãos, o patrono dos combates da reconquista e o símbolo do renascimento da Espanha cristã.
Do simples pescador da Galileia, evangelizador das Espanhas para o Santiago matamouros, guerreiro da cristandade, defensor da unidade cristã da península.
Surpreende o enorme e rápido sucesso do culto Jacobeu (de Jacob = Tiago). A partir do século XI, apenas 200 anos desde que fora encontrado o túmulo do santo, Santiago de Compostela converteu-se num ponto de peregrinação tão importante como Roma ou Jerusalém. Os escritores muçulmanos referem-se-lhe como o a Meca cristã.
Assim, pelas estradas e caminhos da Europa, milhares de pessoas de todos os estratos sociais convergem para Santiago, desenhando à sua passagem muito mais do que simples itinerários, mas toda a uma complexa rede de trocas, de crenças e de sinais. Nos passos humildes dos peregrinos construiram-se lugares e cidades, igrejas e monumentos, feiras e lugares de troca, fronteiras e influências, linguagens, ritos, símbolos e mitos.
É Garcia de Cortazar que escreve: "Para el hombre medival la peregrinación era una ascesis, la representación sensible de la otra peregrinación, del otro viaje, el que concluía en el cielo." E esta é justamente a questão do Caminho de Santiago como de outras peregrinações. Trata-se não apenas de uma viagem física, mas também de uma viagem espiritual.
Em linguagem simbólica diríamos que há um caminho horizontal - sobre a terra - e um caminho vertical - para deus; realidade tão bem representada pela figura da cruz. Não só símbolo do sacrifício de Cristo como sinal de universalidade, uma vez que aponta simultâneamente em todas as direcções.
Os símbolos tradicionais do peregrino jacobeu são o báculo e a concha de vieira. O báculo é mais um antigo símbolo de ligação entre o alto e o baixo e está presente em muitíssimas religiões. A concha representa um espaço côncavo, receptivo, pronto a receber a esmola e a graça de deus. É o coração do peregrino. A simbologia presente no caminho de Santiago é riquíssima e alvo de muitíssimos estudos e especulações sobre as suas ligações aos templários, aos alquimistas, às antigas religiões populares.
São passos partilhados por variadas religiões: o peregrino vive sempre o afastamento dos quadros de vida mundana, a homogeneização dos estatutos sociais, a simplicidade do trajo e da conduta, a reflexão sobre a relação entre o homem e o sagrado. Há sempre o caminho para um centro sagrado que representa uma espécie de axis mundi. O túmulo de Santiago para o cristão como a Kaa'ba para o muçulmano. As semelhanças não podiam ser mais claras.
Assim, invertendo na viagem os seus termos, o peregrino - o estrangeiro, que se afasta do seu lar - está na realidade numa viagem de regresso a casa. À sua verdadeira casa, junto do infinito. Um caminho de regresso a si próprio e ao seu lugar no cosmos, guiados por esse traço luminoso no céu nocturno: a via láctea - a que os antigos chamavam justamente Caminho de Santiago -, o campo das estrelas.
a propósito:
Muitos e bons estudos sobre o Caminho de Santiago na Biblioteca de Gonzalo de Berceo de Valle Najerilla
Por exemplo:
- LO IMAGINATIVO Y LO REAL EN LA FIGURA DE SANTIAGO de Javier García Turza
- EL HOMBRE MEDIEVAL COMO "HOMO VIATOR": PEREGRINOS Y VIAJEROS de José Ángel García de Cortazar
Veja também:
Veja também:
Arquivo Histórico da Arquidiocese de Santiago de Compostela
Catedral de Santiago de Compostela o seu belíssimo site
Santiago na Wikipedia
Codex Calixtinus (um guia do peregrino do século XII) na Wikipédia
Asociación Galega de Amigos do Camiño de Santiago
Símbolos Fundamentales de Camino de Santiago de Julio Peradejordi
Breve Historia de España de Fernando García de Cortazar e José Manuel González Vesga